Josué de Souza

Cientista social e professor, é autor do livro Religião, Política e Poder, pela EdiFurb.

“A relação entre Carnaval e o poder é caracterizado por protesto e contestação”

Colunista comenta sobre as manifestações políticas ocorridas no evento

Era corrido o ano de 1994, e pela primeira vez um presidente visitava a Sapucaí durante e um desfile de Carnaval. Uma modelo entra no camarote do presidente, aproxima-se e cochicha algo em seu ouvido, depois vai embora.

No outro dia, a foto da cena estampavam nos jornais do Brasil inteiro. A modelo estava sem calcinha. Estava deflagrado o maior escândalo da presidência durante o governo Itamar Franco. O episódio quase lhe custou o mandato por quebra de decoro.

Hoje, 26 anos depois, essa história parece um gracejo. Não só por conta do efeito do tempo, mas também pela forma com que o atual presidente lida com o Carnaval. Assim como no ano passado, a data foi marcada pelo forte discurso contra Bolsonaro e sua equipe.

Mesmo que parte de seu eleitorado conservador discorde, a relação entre o Carnaval e o poder sempre foi assim, caracterizado por protesto e contestação. É assim que funciona uma sociedade democrática, sobretudo com as características culturais como a brasileira.

Durante o Carnaval de 2019, o presidente, então recém-empossado, chocou o Brasil e o mundo com o vídeo do golden shower. Este ano, Bolsonaro virou notícia novamente por conta de um compartilhamento de vídeos contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal de Federal.

Na literatura brasileira, salvo engano, o autor que mais se dedicou a estudar o fenômeno do Carnaval foi Roberto DaMatta. Em linhas gerais, o antropólogo carioca aponta que em uma sociedade como a brasileira, marcada pela desigualdade, pelo mando ilegítimo e onde as ordens são construídas de cima para baixo, o Carnaval cumpre a função de “rito de inversão”. Cria um imaginário em onde todos são tratados de forma igual.

“Basta observar que nós, brasileiros, somos um povo marcado e dividido pelas ordens tradicionais: o nome de família, o título de doutor, a cor da pele, o bairro onde moramos, o nome do padrinho, as relações pessoais, o ser amigo do Rei, Chefe político ou presidente. Tudo nos classifica de modo irremediável.” (DA Matta, 1984, p. 77)

Mesmo que por alguns dias, hierarquia ilegítima, e as divisões sociais são invertidas. O Carnaval cumpre, assim, a função de desfigurar o mundo, virá-lo de ponta-cabeça, fazendo piada dos políticos e transformando o momento de brilho e magia em um espaço de todos e de ninguém. Um instante em que se enaltece o talento, a beleza, a sexualidade e a alegria, mesmo em indivíduos marginalizados.

A controvérsia existente entre Bolsonaro e o Carnaval acontece não porque seu governo representa o resgate da moral e dos bons costumes, mas porque, como rito de inversão, o Carnaval aponta que “o rei está nu”, desprotegido da pompa e dos cerimoniais palacianos. Em liberdade, e sem o peso das hierarquias sociais, o povo canta e dança as vergonhas do presidente.

Por outro lado, o presidente, à margem das hierarquias, dos ministros, das ordens e dos títulos – mas se utilizando dessas prerrogativas –, na surdina das redes sociais, age sem o menor pudor, ora publicando vídeo pornográfico, ora maquinando contra os poderes da república. Assim, o comportamento do folião e de Jair Bolsonaro – carnavalesco solitário atrás de um teclado –, são complementares: apenas uma performance do teatro chamado Carnaval.

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