Tive a felicidade de crescer, dos dois aos 24 anos, apesar de bem perto do centro de minha cidade, Blumenau, num lugar riquíssimo em natureza praticamente selvagem e farto em dinâmica natural e fluvial.
Os fundos de nossa casa davam numa baixada facilmente atingida por enchentes e enxurradas. Essa baixada começava na altura do número mil da rua Amazonas e se estendia por quase um quilômetro até além da propriedade do vizinho, Cristiano Theiss, pai do ex-prefeito Felix Theiss que também se criou junto a esse tipo de ambiente.
Nas águas então cristalinas do rio Garcia, formador dessa baixada, eu costumava mergulhar com máscara e tubo respirador e me extasiava com a visão de cardumes formados por centenas de piavas do gênero Astyanax sp, carás Geophagus brasiliensis, tajabicus (Acestrorhynchus sp?) e outras espécies menos abundantes.
Aquela baixada de águas paradas era o que hoje chamo de brejo da minha infância, repleto de vida, de rãs e lagartos, a gambás e muitos outros bichos, muitas aves também. Nas águas paradas muitas espécies de plantas aquáticas, sendo a mais conspícua o chapéu-de-couro, Echinodorus sp. moluscos aquáticos ou semiaquáticos, insetos e larvas de insetos dentre “trocentas” espécies de invertebrados, aquáticos ou não. Era, também, berçário de muitas espécies de peixes, incluindo as hoje raras enguias, que vez por outra eram fisgadas nos anzóis de pesca, no rio Garcia.
Foi nesse ambiente que aprendi que o rio muda de lugar com o passar do tempo. Primeiro, observando sinais de antigos leitos do rio deixados na paisagem. Também, porque, quase imperceptivelmente, caindo um barranco aqui, outro ali, principalmente por ocasião de alguma enxurrada, o rio ia avançando, mudando de lugar, sempre para o lado de fora de suas curvas, enquanto depositava seus pequenos espraiados formando uma nova margem mais baixa do lado de dentro dessas curvas.
Fato curioso foi que, 30 anos depois de adquirido, meu pai, ao vender aquele terreno, que media cerca de 100 metros de fundo, descobriu que a propriedade não terminava mais na margem direita do rio e sim, avançava uns dez metros na margem oposta. Em 30 anos, um terreno que terminava num rio, passou a ser cortado pelo mesmo rio. Não foi o terreno que se alongou, foi o rio que avançou!!
Após cada enchente, restava naquelas baixadas uma grossa camada de lama, de cerca de 10 cm de espessura depois de seca. Lembro muito bem, pois, antes de secar completamente a delícia da rapaziada era disputar quem conseguisse se equilibrar e deslizar mais longe, depois de ganhar velocidade numa corrida, “esquiando” descalço sobre a lama super escorregadia. Tempos maravilhosos, onde não se sabia o que era mi-mi-mi ou, cuidado com isso! vais te machucar! é perigoso! cuidado com aquilo!
Voltando aos 10 cm de lama, ou melhor, sedimento acumulado, era de se imaginar que, com o passar das décadas e séculos, com o acúmulo de sucessivas camadas de solo depositadas pelas enchentes e enxurradas, aquela baixada fosse lentamente desaparecendo. Seria como um aterro natural, feito pela própria natureza, fazendo com que aos poucos as baixadas alagáveis fossem soterradas pela própria dinâmica fluvial e deixassem de existir.
Porém, isso não acontece. Se por um lado, os sedimentos do rio lentamente aterram as baixadas de ambas as margens, por outro lado, erodindo aqui e acolá, o mesmo rio constrói novas baixadas, fazendo com que uma ação seja compensada por outra ação da dinâmica fluvial. Esse jogo de equilíbrio dinâmico da ação dos rios na paisagem sempre aconteceu, desde tempos imemoriais até que chega o ser humano e mete o rio numa “camisa de força” de concreto ou enrocamento, principalmente nas áreas urbanizadas.
Como sociedade egoísta e arrogante diante de uma natureza que é modificada sem ser primeiro conhecida e estudada, demoramos para perceber que, com o engessamento da dinâmica fluvial e com os sucessivos aterros em baixadas alagáveis, nós, Homo pseudosapiens, que alegremente imaginávamos estar domando a natureza, simplesmente só estávamos complicando, a médio e longo prazo, nossa própria vida, com o gradual e insidioso agravamento dos efeitos das enchentes e enxurradas.
O moderno conceito das cidades-esponja, preconizado pelo famoso arquiteto chinês Kongjian Ju, lamentavelmente falecido em acidente aéreo na semana passada aqui no Brasil, já era praticado pela mãe natureza desde o começo dos tempos, em todos os rios de planícies alagáveis ou sem margens rochosas do planeta, como eu mesmo testemunhei ao longo de 30 anos, nas baixadas do brejo da minha infância.
No dia que o lado sapiens de nossa espécie prevalecer, saberemos conciliar o meio caminho entre o respeito à dinâmica fluvial natural e o atendimento às nossas necessidades, considerando os nossos limites diante da sábia natureza. Kongjian Ju, com seus conceitos de cidades-esponja, foi um dos que apontou alguns desses caminhos.

Ainda do meu tempo de Amazônia, essa imagem impressionante de erosão decorrente do desmatamento irracional, obtida junto à estrada Manaus-Caracaraí, km 15, durante trabalho de campo com meus alunos de Ecologia, do curso de Medicina da então Fundação Universidade do Amazonas. Observar dois dos alunos no fundo dessa imensa voçoroca causada pela inconsequente ação humana.
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