Onde é o rio que escolhe por onde quer ir
Imagens de satélite obtidas sempre no mesmo lugar, ao longo de algumas décadas, nos forneceram incríveis registros da dinâmica dos rios. Aceleradas milhares de vezes, ou seja, concentradas em poucos segundos, essas imagens nos mostram certos rios como se fossem cobras vivas, remexendo-se para os lados sem parar. Meandros diversos vão se formando, alterando de formato, aumentando ou diminuindo.
Em muitos casos, o meandro evolui tanto que o início dele encosta no seu fim e o rio passa direto, deixando, no lugar do antigo leito, uma água parada — ou seja, um lago em forma de ferradura. Trata-se de um tipo de lago muito comum em lugares distantes das intervenções humanas, como nas milhares de várzeas da gigantesca planície amazônica.
Quase nada disso existe mais nas regiões densamente ocupadas pelo ser humano. Seja nas áreas urbanizadas, seja por necessidade (muitas vezes discutível) de retificações, dragagens ou aterros, os rios nesses lugares são submetidos a uma “camisa de força” e ficam impedidos de continuar sua evolução na eterna busca pelo equilíbrio hidrológico e moldador de paisagens, muitas vezes com consequências negativas para o ser humano.
Até meados do século passado existiam, por exemplo, muitos meandros na planície do rio Itajaí-Mirim, entre Brusque e Itajaí. Colonizadores pioneiros, a partir de 1860, relataram penosas navegações sobre balsas impulsionadas por varas rio acima, aproveitando as altas da maré, quando a correnteza era atenuada e mesmo reversa nos primeiros quilômetros. Um dos meandros tinha três quilômetros, ao fim do qual os exaustos navegadores passavam a apenas 100 metros de onde haviam passado anteriormente.
Os fantásticos vestígios da dinâmica dos rios podem ser visíveis ao observador postado junto à janela de um avião ou, simplesmente, varrendo paisagens por meio de ferramentas como o Google Earth. Nelas, podem-se perceber, em imagens de uns 20 anos atrás, sinais de sucessivas mudanças de margem do rio Itajaí-Açu no município de Gaspar ao longo dos séculos e milênios, nas proximidades do posto da Polícia Rodoviária Estadual local. Talvez sejam os últimos vestígios visíveis dessa dinâmica antes de serem mascarados por aração da agricultura, serviços de aterros, movimentações de terra e outras modificações locais.
Por incrível que pareça, os que apreciam a natureza não precisam viajar para lugares distantes e inabitados para ver alguns fenômenos da dinâmica dos rios. Aqui mesmo dá para observar esse dinamismo fluvial acontecendo “ao vivo e em cores” na sede do Parque Natural Municipal Nascentes do Garcia, o Parque das Nascentes, inserido no Parque Nacional da Serra do Itajaí, nos locais chamados de Segunda Vargem, poucos quilômetros acima da Nova Rússia, e mais acima ainda, na Terceira Vargem, onde só se pode chegar a pé, em Blumenau.
Na Segunda Vargem, perto da qual pode-se chegar de carro numa visita ao Parque das Nascentes, existem inúmeros e didáticos sinais de antigos leitos do rio Garcia e de seu afluente da margem direita, o ribeirão Garcia-Pequeno, os chamados paleocanais. De muitos deles não se tem ideia de quanto tempo existem — se décadas, séculos ou milênios. Outros, porém, bem recentes, têm data marcada de surgimento. É o caso do leito do Garcia que mudou duplamente de lugar nas fortes chuvas de novembro de 2008, na altura da casa geminada da sede do Parque. Num dos leitos abandonados ainda há água parada, formando um pequeno lago natural, e noutro restou um leito seco.
Partindo dali até o local de banho denominado Poço da Lontra, num trecho de menos de 300 metros, pode-se localizar a olho nu nada menos que oito sinais de paleocanais — a maioria, provavelmente, formada por antigas passagens do ribeirão Garcia-Pequeno — fora outros paleocanais escondidos na capoeira acima desse poço, na margem direita desse ribeirão. Pelo menos um deles, se não me falha a memória, surgiu na chuvarada de 2011.
Em 2013, também se não me falha a memória, o Garcia-Pequeno mudou novamente de leito e, fenômeno fantástico, voltou a correr por cerca de 100 metros num antigo canal que já lhe pertencia no passado! Igualmente há, escondidos no meio da mata, sinais de paleocanais do próprio rio Garcia no lado esquerdo de seu vale, tanto dentro do Parque das Nascentes/Parque Nacional quanto acima, no Sítio Bogo, uma propriedade ainda particular.
O Parque das Nascentes, englobado pelo Parque Nacional da Serra do Itajaí, portanto, é um lugar que permite a observação fácil e extraordinária dessa dinâmica fluvial, cada vez mais rara de se observar fora das áreas de natureza protegida. Essa dinâmica merece ser preservada para permitir a apreciação por todos quantos se interessam pelo estudo ou simples observação da paisagem, interpretada por meio de placas discretas que ali podem ser instaladas.
Por essas razões, é de extrema importância que seja permitido à natureza manter tais tipos de fenômenos, pelo menos em locais como Unidades de Conservação, caso dos dois parques aqui mencionados. Nenhum interesse humano seria mais importante do que permitir que essa dinâmica seja mantida — e isso está previsto em legislação, como o Decreto Federal 84.017/1979, Regulamento dos Parques Nacionais Brasileiros, e a Lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.
De quebra, tem-se aqui, no Parque das Nascentes e no Parque Nacional da Serra do Itajaí, um laboratório aberto na natureza, um relativamente raro fenômeno de “rios livres”, como já mencionado, cada vez mais difícil de ser observado nas áreas totalmente dominadas pela ação humana. Por isso, não se concebe que ali sejam feitas quaisquer obras de contenção de margens que resultarão, fatalmente, no congelamento dessa dinâmica.
São lugares onde não nos é permitido escolher onde o rio deve passar, mas, sim, é o rio que escolhe por onde quer passar. Ademais, pedagogicamente, se não houver territórios onde a natureza possa nos mostrar como ela funciona, como poderemos aprender o que é equilíbrio ecológico?

Esse filhote de coruja, provavelmente da espécie Pulsatrix perspicillata, que apareceu órfão no campus do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, no meu tempo de Manaus, ajudou a consolidar duas ternas amizades: com a famosa artista botânica inglesa Margaret Mee e sua amiga, a holandesa Maria Adriana de Pagter-Brower, a Rita Brower, radicada em Cabeçudas, Itajaí-SC. Conversei com Margaret pela última vez em sua casa, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, antes de ela voltar para a Inglaterra, depois de 30 anos viajando pelo Brasil, onde se dedicou a retratar plantas e flores da Amazônia brasileira. Uma sala inteira dentro de um casarão no Jardim Botânico Kew Garden, em Londres, é dedicada à exposição de muitas de suas pinturas. Foto: Lauro E. Bacca, 04/09/1977.





