40 anos da enchente de 83: relembre em imagens, documentos e depoimentos uma das maiores tragédias de Blumenau

Catástrofe é uma das mais emblemáticas da história blumenauense

Nesta sexta-feira, 7, um dos fatos mais tristes da história de Blumenau completa 40 anos. Era dia 7 de julho de 1983, às 9h, quando a Defesa Civil de Blumenau mediu o nível do rio Itajaí-Açu, por conta das chuvas iniciadas dois dias antes – dia 5 de julho – e que pareciam não ter fim.

Com a régua apontando 9,3 metros, foi confirmado o início da grande enchente que durou um mês e resultou em mortes e milhares de famílias desabrigadas.

Documento da Defesa Civil de 1983, apontando as medidas da enchente. Foto: Jotaan Silva/O Município Blumenau

Naquela época, a estrutura municipal para essas situações não era nem perto do que é atualmente. Até existia a Defesa Civil, mas ela não contava com agentes e estratégias como as que foram criadas e montadas depois, até por conta do que foi registrado em 83.

A Defesa Civil era uma comissão, que tinha o secretário nomeado pelo prefeito e que liderava membros representantes dos órgãos de segurança, como Corpo de Bombeiros, Polícia Militar e 23º Batalhão de Infantaria em Blumenau. Em 1983, o secretário era o ex-militar José Augusto de Carvalho Nóbrega.

Hoje, aos 81 anos, ele conta o quão difícil foi se dedicar 24 horas por dia ao desafio de enfrentar uma enchente. Durante os 32 dias, Nóbrega ficou o tempo todo dentro do prédio da prefeitura, saindo apenas para realizar as reuniões com os demais membros da comissão e definir estratégias de combate às cheias, resgate e atendimento às pessoas.

Nóbrega foi secretário da Defesa Civil em 1983. Foto: Jotaan Silva/O Município Blumenau

Nesse período ele ficou junto às centenas de pessoas abrigadas no mesmo prédio municipal, pois tinham perdido suas casas. Cerca de mil pessoas, entre crianças, adultos e idosos, se abrigaram na prefeitura durante toda a enchente e tiveram que dividir alimentos, roupas, água e qualquer outro mantimento disponível.

 

“Lembro que dos 32 dias, fui em casa apenas duas vezes. A primeira logo no início, para buscar algumas coisas e depois quase no fim, para ver a família, tomar um banho e trocar de roupas. Minhas filhas que eram pequenas nem me reconheceram, eu tava com barba sem fazer, roupas de gari da prefeitura, jaqueta da polícia, cabelo mais cumprido, totalmente diferente de quando saí de casa”, conta Nóbrega.

Aliás, dentro do prédio da prefeitura a higiene pessoal praticamente não existia. Os banhos, além de escassos, eram tomados nas calhas, aproveitando a água da chuva que não parava.

Prefeito há apenas seis meses, Dalto dos Reis, também morou no prédio municipal durante esse período. Apesar de todas as dificuldades pessoais, o mais difícil, segundo o líder municipal, foi ver o olhar de desespero, medo e tristeza da população.

“Lembro de casas desmoronadas, morros que também desmoronaram, ponte destruída, escolas destruídas, enfim, muita coisa destruída. Mas talvez o que mais me impressionou e ainda me marca, com certeza foi a fome que eu vi o ser humano enfrentar. A alimentação não chegava ao prédio da prefeitura e a quantidade de pessoas, crianças e idosos era muito grande. Não existia comida para toda aquela gente e a fome transformava as pessoas”, afirma Dalto.

Reportagens da época corroboram com as falas do ex-prefeito. Uma página do jornal de Santa Catarina do dia 21 de julho de 1983 destaca a falta de comida em Blumenau, que tinha que dividir os alimentos com as outras diversas cidades atingidas pela enchente em todo o estado.

“A cidade de Blumenau, ontem, ficou sem receber alimentação por parte da prefeitura. Isto deve-se a má organização que está havendo na distribuição para os municípios atingidos e também porque todos os caminhões que vinham diretamente a Blumenau receberam ordem para que a primeira parada fosse em Florianópolis”, descreve a reportagem.

Foto: Arquivo Histórico de Blumenau

Após a primeira medição oficial, relatada no início da reportagem, a comissão da Defesa Civil do município continuou medindo e acompanhando o nível da água na cidade.

Apesar de não gostar das lembranças da época, o ex-secretário da Defesa Civil guarda até hoje o documento preenchido a mão, a cada meia hora, que dizia em qual nível a água estava no Centro da cidade.

Nóbrega guarda até hoje aas medições realizadas durante a enchente em 83. Foto: Jotaan Silva/O Município Blumenau

“Era desesperador. Eu nunca tinha vivido algo desse tamanho. A gente via que a água subia com uma rapidez. De manhã era tanto, poucas horas depois já tinha metros a mais, e mais pessoas saindo de casa, mais pessoas perdendo as casas”, conta.

A primeira página do documento mostra os 9,30 metros do dia 7 de julho, às 9h, e os 10,35 metros, poucas horas depois, às 13h. No dia seguinte, às 9h, a régua já apontava 13,68 metros, e continuava subindo.

“A água chegou num nível tão alto que ela não só alagava as casas e deixava carros submersos, ela carregava também. Eu vi uma casa inteira passando na minha frente, parando só quando bateu na ponte no Centro da cidade, se destruíndo”, conta Nóbrega, que também faz um relato pessoal da época.

“Lembro que a casa do meu avô ficou totalmente submersa, até me assustei, pensando que ele havia ficado lá dentro, já que odiava sair de casa. Mas graças a deus meu cunhado havia conseguido tirá-lo de lá”, relembra.

O pico na enchente de 1983 foi no dia 9, dois dias após o seu início, quando alcançou 15,34 metros – uma das maiores da história de Blumenau, até então.

Não existem números oficiais de mortos ou desabrigados durante a enchente de 83 em Blumenau e Santa Catarina. Estima-se que cerca de 50 mil pessoas tiveram que sair de suas casas durante o período em que a água tomou grande parte da cidade. Em todo estado, esse número chegou a mais de 200 mil pessoas.

Em relação aos mortos, há relatos de oito e até mais de dez vítimas fatais decorrentes da enchente em Blumenau. No estado, a estimativa é que pelo menos 49 pessoas faleceram.
Além das mortes em decorrência das águas invadindo as residências e desmoronamentos, a leptospirose também foi uma das causas que vitimaram os catarinenses.

“Das 14 pessoas internadas por suspeitas [da doença] nos hospitais de Blumenau, duas morreram e seis receberam alta após ser constatado que o mal era de hepatite”, informou uma reportagem da época.

Foto: Arquivo Histórico de Blumenau

Com mais de 50 mil pessoas desabrigadas na cidade, a solidariedade do povo blumenauense, que sempre é destaque nas situações de catástrofes na cidade, se destacou como um verdadeiro exemplo de união e ajuda mútua.

Diante das adversidades, a comunidade se mobilizou para prestar auxílio aos mais afetados, oferecendo abrigo, comida, roupas e itens de higiene pessoal.

Rita Heidorn, de 78 anos, foi uma das milhares de pessoas que se mobilizaram para ajudar aqueles que foram mais afetados. Em julho de 1983, ela era moradora da rua Araras, no bairro Velha, que fica numa espécie de “fundos” da rua João Pessoa, muito atingida durante a enchente.

Ela conta que a primeira ajuda foi para familiares, que moravam na rua João Pessoa e que tiveram a casa quase toda submersa pela água. “Eles levantaram todos os móveis e foram para o sótão, até porque não sabiam que a água ia subir tanto. Mas subiu, aí ficaram ilhados e tiveram que morar nesse sótão o mês inteiro. Como eu morava em um lugar mais alto e tinha bastante mantimento em casa, levava para eles de canoa”, explica Rita.

Rita é um dos exemplos de solidariedade registrados na enchente de 83 em Blumenau. Foto: Jotaan Silva/O Município Blumenau

Como contava com um poço em sua residência, o que a permitia ter acesso à água potável, ela também decidiu compartilhar com os vizinhos e familiares. Além disso, ela também aproveitava a água para lavar roupas para os vizinhos.

No entanto, a ajuda de Rita também só era possível graças à colaboração de outro vizinho, Claus Muller. Ele possuía uma canoa e se tornou essencial para auxiliar no transporte das pessoas e das doações.

“Cada um tinha sua missão para cumprir, seja quem tinha água, quem tinha a canoa, quem tinha os alimentos. Todo mundo que tinha alguma forma de ajudar, ajudava, porque era um momento de muita tristeza, então a gente só queria que tudo passasse”, conta.

A enchente de 1983, além de uma das mais marcantes para a cidade, também foi um ponto inicial de uma mudança na forma de pensar a Defesa Civil e as formas de redução de danos. Por ser uma das cidades mais prejudicadas, Blumenau conseguiu indicar o vice-prefeito da época, Paulo Oscar Baier, para presidência do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), órgão responsável pelas construções de barragens.

“Por conta de tudo que aconteceu na enchente de 83 foi construída a Barragem Norte, que hoje é em José Boiteux. Isso só se tornou realidade por conta da presença do Dr. Paulo Oscar Baier no DNOS. E eu diria ainda que se não fosse a construção da barragem, nesses 40 anos que já se passaram, nós teríamos tido outras muitas enchentes daquele porte em Blumenau e cidades vizinhas, mais do que tivemos”, afirmou o prefeito da época, Dalto dos Reis.

Além da barragem, entre outras questões estruturais que mudaram desde 1983, a evolução da Defesa Civil de Blumenau é o que mais se destacou de lá pra cá. O órgão se tornou referência para todo o país por conta dos sistemas de alerta e monitoramento aplicados.

“Os dois principais pontos para evolução foram após 83, com as construções de barragens e etc, e depois de 2008, com o investimento pesado na Defesa Civil. Criação de planos de contingência, de programas de educação e conscientização da população, além é claro de toda a tecnologia que começou a surgir e foi efetivada na cidade”, destaca o atual prefeito de Blumenau, Mário Hildebrandt.

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