Anônimos: profissional de Educação Física de Blumenau experimentou transformação social com voluntariado na África
Em caravanas para o sertão nordestino e para o continente africano, Ana se dedica a diversas comunidades além do bairro Fortaleza
Apaixonada por estar entre as pessoas, Ana sempre esteve envolvida em campanhas, ações e eventos para ajudar o próximo. “Eu sempre tomava a frente, era algo natural. Nem via como voluntariado. Agora na fase adulta que meus amigos de infância comentam que eu sempre eu fiz isso”, conta.
Logo cedo, a blumenauense entendeu que o que fazia sentido para ela não era apenas o assistencialismo (como doações de alimento, roupas e outros bens necessários), mas sim a transformação social.
“Durante a faculdade fiz trabalho voluntário na Romário Badia como professora de dança para crianças e ginástica para senhoras. Ali foi meu despertar de entender que ia além. Tinha crianças que não tinham café da manhã, estavam com a roupa rasgada, tinham histórico de agressão… Passei a me envolver mais”, relata.
Atuando em academias de Blumenau, Ana sempre manteve o espírito colaborador. Em toda oportunidade, angariava doações e ajudava quem precisava. As pessoas passaram a procurar ela para entregar roupas e móveis usados e outras contribuições.
“Às vezes eu nem tinha ainda para quem doar, mas aceitava falando que sim para encorajar a pessoa a continuar doando. Logo aparecia uma família precisando e eu enviava fotos para o doador para mostrar a diferença que fez na vida de alguém”, assume.
A organização humanitária brasileira atua em diversas regiões necessitadas, com caravanas de transformação social e programas de apadrinhamento de crianças. Encantada com a proposta, Ana decidiu descobrir mais.
“Fiquei até de madrugada olhando o Instagram deles e no dia seguinte apadrinhei uma criança. Mas eu queria entender melhor como funcionava e logo me inscrevi para ser caravaneira”, lembra.
Como não tinha o dinheiro necessário para viajar até o continente africano, Ana se inscreveu para uma viagem que aconteceria dentro de 18 meses. Porém, foi surpreendida com uma vaga aberta em junho de 2018.
Com menos de meio ano para se preparar, ela contou com o encorajamento dos amigos e do então marido para ir para o Moçambique. Com doações de alunos, ela organizou uma rifa e pagou os R$ 4 mil em passagens aéreas. “O resto eu parcelei no cartão”, conta aos risos.
Ao desembarcar no aeroporto de Joanesburgo, na África do Sul, a blumenauense ficou assustada com a magnitude do local. Enquanto os colegas faziam compras, ela decidiu seguir a guia até o portão de embarque. Porém, no meio da multidão de gente, se perdeu.
Sem a moeda local, dólares ou se quer reais suficientes para uma nova passagem, Ana se viu desesperada. Além de não falar inglês, ela não tinha um chip de telefone para tentar contato com outro caravaneiro.
Após minutos agoniantes, ela lembrou dos grandes telões dos aeroportos e procurou pelo próximo voo para Maputo, capital de Moçambique. Ao ver que tinha apenas vinte minutos, ela correu pelos corredores.
“Depois de correr muito cheguei no portão errado. Chorei desesperada achando que ficaria presa lá. Quando finalmente encontrei meu grupo, descobri que ainda faltava algumas horas para o nosso voo”, lembra aliviada.
Porém, o cansaço e o estresse fizeram Ana questionar se havia tomado a decisão correta. Após 24 horas sem dormir direito, ela ainda precisava pegar um micro-ônibus para a aldeia e enfrentar oito horas de estrada de chão.
“Quando eu botei o pé na areia e vi toda a comunidade na nossa frente cantando e dançando, eu botei a mão no coração e pedi perdão a Deus por ter sido tão egoísta. A recepção já acabou com todo meu arrependimento e cansaço”, diz.
“O que eu mais gostei é que, além de dar a comida, o processo traz a própria comunidade para trabalhar no centro de acolhimento e formar uma comunidade sustentável. Depois eles se viram sozinhos”, relata Ana.
O grupo também inaugurou uma nova aldeia, com a construção de um poço e de uma nova escola. Os caravaneiros também buscam identificar possíveis doenças dos moradores, para poder encaminhá-los para hospitais da capital.
Na inauguração, mais de 1,5 mil almoços foram servidos. Todos integrantes tiveram uma chance de comer. Com os caminhões chegando, alguns viajantes chegaram a duvidar que a comida daria conta.
“Eu estava com muito medo. Eu e meus amigos enchíamos os pratos rezando o Pai Nosso para não faltar comida. Mas quando o líder falou que todos tinham comido, ainda tinha almoço para gente. Foi um milagre, me arrepia até hoje”, lembra.
Ao retornar ao Brasil, Ana e os amigos criaram o projeto Águas Para África. Com campanhas e rifas, eles juntam dinheiro para construir poços nas comunidades. Nesses últimos dois anos, cinco aldeias passaram a ter água graças a eles.
“Pra mim foi a experiência mais difícil. Meu maior impacto foi na triagem. Entrevistei advogado, bailarina, repórter, médico… Todos procurando apenas uma barraca pra se abrigar. A energia era muito pesada”, conta.
Segundo ela, enquanto em Moçambique o sentimento do povo era de gratidão, crianças felizes e olhos brilhando por ver comida e atividades, os venezuelanos chegavam ao país desesperançosos.
“Muita gente questiona por que eu ajudo lá e não aqui. Até por não conhecerem meu trabalho na região. Mas eles não entendem que não existe ‘lá’, estamos todos no mesmo planeta”, argumenta.
Ana brinca que com o dinheiro que levantou para bancar a viagem ao continente africano poderia ter realizado o sonho de conhecer as Maldivas. Porém, acredita que a experiência é incomparável.
“Praia e luxo temos aqui. Lá, não teria conhecido as pessoas e vivido o que vivi. Não me importo em ter carro ou casa própria. Eu sou do povo”, conclui.
“Mesmo tendo visto filmes e reportagens, não concebia que era daquele jeito. Vi que tínhamos uma África dentro do Brasil. Eu não sabia que ainda existiam comunidades inteiras vivendo em casas de barro. É uma população esquecida”, relata.
O que mais impressionou Ana é que a comunidade vivia a menos de 20 quilômetros da área urbana de Canudos. Ainda assim, as casas não tinham água ou energia elétrica, o poço estava quebrado e tudo que o município havia providenciado haviam sido cisternas. Porém, falta chuva.
“Com o desemprego, as famílias acabam consumindo o que recebem em cestas básicas. Algumas se enchem de açúcar pra não passar fome. Com isso, encontrei mulheres que ao mesmo tempo em que sofriam com diabetes e obesidade, estavam desnutridas”, conta.
Para a blumenauense, uma das principais diferenças entre o sertão e as comunidades africanas é a falta de um senso de comunidade. De acordo com ela, as mulheres da comunidade nordestina não se sentiam parte da sociedade.
“Elas estavam esquecidas. Quando visitamos pela primeira vez, elas nem conseguiam nos olhar nos olhos. Os homens não queriam participar, ficavam longe. Hoje eles pedem por mais atividades. Virou um sistema comunitário, com eles se unindo”, comemora.
“Construímos casas, oferecemos oficinas de artesanato, construímos um espaço pro contraturno das crianças. Eu implantei a atividade Sertão em Movimento, para as mulheres jogarem futebol. Três vezes por semana elas correm atrás da bola junto das cabras e fazem caminhada”, relata.
Com a instalação da internet recentemente, Ana planeja enviar vídeos com diferentes atividades físicas, para manter a saúde física e mental. “Ver que as coisas continuam acontecendo sem nós, é o mais gratificante. Eles estão andando com as próprias pernas”.
E o ciclo se fechou: ao ficar sabendo do projeto, Alok, que inspirou a primeira caravana de Ana, foi até Canudos e apadrinhou a comunidade. Ele financiou a construção de casas e ajudou financeiramente a continuidade do trabalho.
Durante a pandemia, o foco dela está sendo Blumenau. Angariando roupas, alimentos e produtos de higiene para quem precisa. Junto da amiga Kelly, ela organiza as demandas e elabora a logística de entregas.
A esperança para este mês de agosto é retomar um evento criado por ela: a Corrida do Lixo. O que começou com Ana ajuntando pacotes e papel durante as caminhadas noturnas com os alunos, virou uma festa.
“Um dia todos pegamos luvas e sacos e buscamos apenas no raio de dois quilômetros. Ninguém acreditava no tanto de lixo. Virou atividade de aniversário, saímos em três grupos e deixamos todo reciclável na frente do estúdio para as pessoas verem”, comenta.
Ana enfatiza que acredita que fez pouco. Mas este trabalho pequeno, unido com o de várias outras pessoas, que criou grandes mudanças. Para ela, a felicidade de voltar às comunidades e ver a população mais feliz e independente, é incomparável.
“O que me move é acreditar que dá pra trasnformar uma comunidade com uma pequena ação. Servir e estar com as pessoas é o que faz sentido pra mim. Eu volto com as baterias recarregadas”.