Blumenau teve “casamento às cegas” no passado; entenda como funcionava
Com o passar do tempo, muitas das tradições continuaram
Por Iáscara Zultanski- 15/03/2023
- 10:00
Casar, ter filhos e cuidar de casa. Por muito tempo, esse foi o maior sonho de muitas jovens tradicionais, que esperavam um pretendente amoroso que as ajudasse a realizar suas vontades.
Durante a colonização de Blumenau, a forma como as mulheres conheciam seus esposos era um tanto diferente; logo quando os navios aportavam, elas eram pedidas em casamento “às cegas”.
A Feira de Casamento, como é referida essa forma de juntar os casais antigamente, chamou a atenção dos blumenauenses após André Cantoni, produtor do podcast Blumencast e amante da história do município, ler sobre o assunto na edição do Blumenau em Cadernos, no tomo 60, número 4, na página 46, da edição de julho/agosto de 2019 e fazer uma publicação.
Durante a colonização de Blumenau, havia menos mulheres do que homens. Segundo apurado por André, entre os 17 primeiros imigrantes, haviam apenas 6 mulheres, em 1851 vieram oito homens e nenhuma mulher, em 1858, haviam 54 homens e apenas 28 mulheres, e quando feito uma proporção entre essas mulheres das quais não eram comprometidas, o número era ainda menor.
Por conta disso, os homens começaram a se organizar de forma que, através de um sorteio, era escolhida uma mulher na qual pudessem pedir em casamento. Segundo a explicação da edição, a lista de passageiros era disponibilizada previamente, e assim era possível sortear qual homem e qual mulher formariam um casal.
Assim que eram definidos os parceiros, e que o navio atracava no porto de Blumenau, os homens mal esperavam as damas saírem e já entravam na embarcação para fazer a proposta de casamento, e por via de regra, elas aceitavam.
“É claro que acontecia de um velho tirar na sorte uma bela jovem, ou o inverso, um jovem acabar tirando uma mulher mais velha. Mas isso era deixado na mão da Fortuna, deusa da sorte, e ninguém reclamava do destino, muito menos quando um velho era sorteado com uma jovem”, afirma o texto.
Além disso, as jovens damas não sabiam desse sistema de casamentos às cegas, pois a “loteria” era escondida por todos da cidade. “Cada um se comportava como se estivesse perdidamente apaixonado”, finaliza o texto.
Evolução dos relacionamentos
Com o passar dos anos, a forma como os casais ficavam juntos acabou mudando. Agora os jovens podiam namorar e escolher com quem iriam se casar. Contudo, algumas das características continuaram, mesmo com o passar do tempo.
A historiadora especializada em acervos e em história regional, Clarice Ehmke Gayo realizou uma pesquisa de pós-graduação onde desenvolveu um estudo referente aos rituais de casamentos que aconteciam nas áreas rurais de Blumenau em 1950 e 1960, que explicou como algumas das tradições se mantiveram.
A ideia para a pesquisa surgiu após sua orientadora do trabalho de finalização da pós-graduação, questionar qual seria um tema interessante para tratar, e dessa forma Clarice lembrou que quando era adolescente, entre as décadas de 1980 e 1990, frequentava muitas festas de casamento, que seu pai era convidado.
“Os casamentos, principalmente os dos bairro Testo Salto e bairro Encano, eram muito esperados. Sempre tinha muita música, muitas crianças, e muitos rituais que eu percebia que não tinha em outros casamentos, então eu ficava com esse questionamento do porquê aquilo acontecia”, comenta Clarice.
Dessa forma, a pesquisadora, através da memória que tinha da época, resolveu desenvolver um trabalho referente a esses costumes e rituais, e para isso entrevistou senhoras que haviam se casado entre 1950 e 1960 e a historiadora de Blumenau, Sueli Petry, com o acervo histórico municipal.
Clarice explica que os rituais de casamento começavam muito antes, com o planejamento da festa. A partir do momento em que a jovem aceitava o pedido de compromisso, os vizinhos já começavam a se preparar escolhendo qual “porquinho” seria engordado até o momento da festa, qual gado seria utilizado. Além disso, os convidados recebiam os convites através de um homem em um cavalo, que passava de porta em porta comunicando a todos, já que naquela época não era muito comum convites em papel.
A pesquisadora ainda conta que as entrevistadas relataram que “o noivado era o momento mais perigoso”, e que inclusive há livros da época que ensinavam a como ser uma “boa moça” e evitar cair nos flertes de seus noivos, para não ter gravidez indesejada ou algum outro problema, e para evitar como cair nas fofocas dos vizinhos.
“As famílias não queriam se envolver em fofocas, então havia a necessidade de vir pedir aos pais para autorizar o namoro e o noivado. Quando era aceito, o relacionamento era supervisionado, só podiam ficar juntos na sala, com algum irmão ou familiar junto. O casal nunca ficava sozinho. Quando noivos, as coisas mudavam um pouco e as entrevistadas deixaram escapar que quando sozinhos, o casal aproveitava”, brinca Clarice.
Tradições durante os festejos
O momento em que a moça dizia sim era muito significativo, porque era a partir dali que todos os esforços do casal seriam dedicados a guardar dinheiro, construir um enxoval para a vida a dois.
Os amigos e familiares do casal também começavam a se preparar para o momento. Entre os rituais tradicionais, havia um chamado “quebra caco”, que acontecia na sexta-feira anterior ao casamento, quando um grupo de amigos do casal, ia até a residência onde eles moravam, de surpresa e com uma caixa cheia de cacos de vidro e louças quebradas.
“Então um amigo se fazia de distraído e batia na caixa, fazendo ela cair, e isso acontecia durante várias vezes na noite. Depois das minhas pesquisas, descobri que esse ritual era feito para que quanto mais barulho a caixa fizesse, mais prosperidade aquele casal teria na relação, e também era como uma despedida de solteiro”, explica a pesquisadora.
Já no dia do casamento, as coisas começavam agitadas logo no início do dia. Durante a manhã, o casal ia até algum estúdio fotográfico, no centro da cidade, para tirar uma foto com a roupa da noiva e do noivo, que seria utilizada.
Arquivo digital da Prefeitura de Blumenau
Após o registro, o casal ia até a igreja, onde aconteceria a cerimônia, e ao término, ia para um grande almoço, e por fim a festa, que seguia até tarde da noite. Antes da festa iniciar, em alguns casamentos, havia alguém importante para o casal que daria início aos festejos, declamando um poema antes da entrada dos noivos no salão.
Entre os rituais que aconteciam durante as festas, está a Marcha das Cozinheiras, que era um momento em que todas as pessoas que haviam feito parte do jantar, os churrasqueiros, a confeiteira, quem recheou os frangos, se reunia no local onde estava acontecendo a festa para receber um agradecimento dos noivos e dos convidados. Clarice explica que quem ia buscar os cozinheiros era a própria banda, e eles desfilavam juntos pela festa, do jeito que estavam, usando os lenços de cabelo e aventais.
Era comum, que quando os irmãos mais novos se casavam primeiro, o mais velho “pagar uma prenda” e sentar no forno quente, onde eram assados os alimentos do casamento. Ele era levado pelos outros homens convidados e ficava exposto para todos verem que ainda não estava em um relacionamento “firme”.
Um outro ritual comum era relacionado às flores do buquê e da coroa usada no cabelo pelas mulheres durante a cerimônia. A entrega das flores acontecia, diferente de atualmente, com a noiva vendada, e enquanto todas as moças solteiras dançavam, dessa forma, a noiva não sabia para quem ia dar o arranjo.
Já o arranjo de cabelo, era retirado por volta da meia-noite, e colocado em uma caixa, e então o noivo e a noiva escreviam uma dedicatória ou um desejo que queria para o casal, e guardam junto, sem o outro saber o que havia escrito. A caixa, que geralmente ficava como um enfeite na sala, só era aberta quando um dos cônjuges falecia, e assim era possível descobrir o que ele havia escrito.
Para finalizar as comemorações, todas as sobras de alimentos do almoço ou jantar, do casamento, era servido no almoço do dia seguinte.
Herança cultural
Com o passar das décadas, algumas das tradições e rituais se perderam. A pesquisadora Clarice explica isso aconteceu por que, como essas tradições aconteciam em bairros mais afastados, muitas pessoas acabavam mudando para as partes centrais do município, e esses rituais acabaram perdendo espaços nos casamentos, com o tempo.
“Essas culturas começaram a se esvair a partir dos anos 2000, quando os jovens começam a querer se afastar das culturas do interior”, explica o ponto de vista de Clarice.
Apesar dessa perda, alguns dos costumes ainda se mantiveram. Ainda há famílias e amigos, das áreas mais rurais, que celebram o quebra–caco e procuram manter algumas das tradições de decoração dos casamentos.
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