“Nenhuma obra cinematográfica jamais será imparcial”
Colunista comenta sobre documentário brasileiro que concorreu ao Oscar
Democracia em Vertigem e o Oscar
Durante a 92ª cerimônia do Oscar, ocorrida ontem em Los Angeles, fomos representados na categoria de Melhor Documentário com “Democracia em Vertigem”, da diretora mineira Petra Costa. O vencedor da categoria foi “Indústria Americana”, documentário que trata sobre relações da classe trabalhadora e que foi produzido pela Higher Ground Productions, uma produtora fundada pelo casal Barack e Michelle Obama.
Ainda que não tenha sido escolhido pela Academia, o filme de Petra Costa, que traz a narrativa do golpe de 2016 sobre a fraude do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, já é vitorioso por algumas razões: 1) porque denuncia para o mundo como morrem as democracias, 2) porque amplia o escopo de espectadores para muito além do território brasileiro, 3) porque, muito provavelmente, ele será lembrado e mencionado em todo e qualquer debate sobre a situação política brasileira, 4) porque reflete sobre a necessidade de estar atento às fake news, a forma de imprensa que tornou possível fenômenos como o bolsonarismo, 5) porque demarca a importância de um cinema crítico, reflexivo e questionador, denunciando a ascensão do autoritarismo e do neofascismo. Nas palavras da diretora, “’Democracia em vertigem é uma carta de amor ao Brasil”.
Para maior desespero da direita raivosa, a comitiva brasileira (que contou com a presença da líder indígena Sonia Guajajara) fez uma manifestação política no saguão do local da cerimônia, segurando cartazes em defesa da Amazônia e dos povos indígenas, sem esquecer dos 697 dias de impunidade no caso de Marielle Franco e da importância de resistir ao neofascismo.
Você que se ofendeu com a nominação de “Democracia em Vertigem” e achou o documentário parcial, lembre-se: nenhuma obra cinematográfica jamais será imparcial.
O caráter político esteve presente em diversos momentos da noite, a exemplo do discurso da diretora de “Indústria Americana”, Julia Reichert: “Nosso filme é de Ohio, mas também da China, e poderia ser de qualquer lugar onde as pessoas vestem um uniforme e vão trabalhar para trazer uma vida melhor para sua família. Trabalhadores e operários têm uma vida cada vez mais difícil. E nós acreditamos que a vida vai melhorar quando os trabalhadores do mundo se unirem”, uma nítida alusão à frase: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”, de Karl Marx.
Nas redes sociais, bolsonaristas comemoraram a derrota de “Democracia em Vertigem”, sem refletir sobre a narrativa e discurso proferido pela diretora do documentário vencedor. Petra, acusada de ser “militante anti-Brasil” e de espalhar mentiras no exterior, só demonstra a baixeza moral dos bolsonaristas, beirando a boçalidade.
“Parasita”, filme sul-coreano também político, vencedor de quatro estatuetas do Oscar, sendo e o primeiro em língua estrangeira a vencer na categoria de melhor filme, aponta para o tema da desigualdade social, refletindo, de forma inteligente e sarcástica, sobre a condição de classe na Coreia do Sul. Um filme profundo e cheio de camadas que, com justiça, foi reconhecido pelos membros da Academia.
Precisamos nos acostumar com a ideia de que o cinema, ao mesmo tempo que é arte e comunicação, é também política, e uma pretensa neutralidade não existe, nenhum produto audiovisual é neutro.
No caso da obra de Petra, a tese é clara e questiona a vitalidade de nossa democracia, apresentando o desenrolar do golpe parlamentar-jurídico-midiático sofrido por Dilma Rousseff em 2016. Não levou o Oscar, por razões que explicarei na minha próxima coluna, mas levou um lugar na História.