Orfeu negro: não era só um filme sobre Carnaval
“A felicidade do pobre parece a grande ilusão do Carnaval. A gente trabalha o ano inteiro por um momento de sonho ao fazer a fantasia. De rei, ou de pirata ou de jardineira. E tudo se acaba na quarta-feira. Tristeza não tem fim. Felicidade sim”.
Quando Tom Jobim e Vinícius de Moraes compuseram “A felicidade” para o filme Orfeu Negro (ou Orfeu do Carnaval, 1959), queriam, obviamente, falar do Carnaval. Mas, existem maneiras de falar dessa importante parte da cultura brasileira.
Os autores optaram pela felicidade carnavalesca como maneira de escapar da angústia e de trazer alento a um destino sem esperança. Mas que tem dia para acabar. Não é exagero dizer que Orfeu Negro seria também um pontapé inicial para que a Bossa Nova tivesse seu alvorecer internacional nos anos 1960.
A obra fílmica é uma coprodução Brasil, França e Itália feita a partir da adaptação da peça “Orfeu da Conceição”, de Vinicius de Moraes. Aqui, o mito grego de Orfeu se passa no Carnaval. Orfeu, condutor de bonde e sambista do morro, se apaixona por Eurídice, uma jovem do interior que vai para o Rio de Janeiro fugindo da morte, representada por um homem fantasiado que a persegue. O amor de Orfeu por Eurídice, entretanto, desperta a ira da ex-noiva de Orfeu, Mira, e a morte acompanha tudo de perto.
Seria incrível comentar como esse filme, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960, fala de um Brasil em que nós, brasileiros, nos identificamos e nos sentimos representados. Mas não é o que acontece. Aplaudido no exterior e criticado no Brasil, Orfeu Negro está envolto por uma série de polêmicas. Indignou, inclusive, o próprio Vinicius de Moraes.
Na transposição cinematográfica, o francês Marcel Camus reforça incontáveis clichês do que é ser brasileiro. Quando adaptou a peça de Vinicius para um longa-metragem, ele fez alterações na história para que ela se tornasse mais atraente para o público estrangeiro. Tornar um filme mais “atraente” significou, de forma prática, apelar para um exotismo barato e problemático de Brasil.
Essa discussão me faz lembrar do documentário “Olhar Estrangeiro”, de Lúcia Murat, que aborda justamente sobre os estereótipos brasileiros no cinema. Quando Murat foi atrás dos diretores que outrora fizeram filmes que só reforçavam um Brasil “do samba, do sexo, do exótico”, vários admitiram que a indústria cinematográfica os pedia por esses clichês tradicionais. Erotizar e exotizar o Brasil vende. Mais uma vez, dentro das nossas querelas, “O Brazil não conhece o Brasil”.
Esse “Brasil para turista ver” demonstra a diferença de recepção entre a crítica brasileira e a crítica estrangeira. O cineasta francês Jean-Luc Godard talvez seja uma exceção, pois fez críticas severas ao filme, discordando de vários estrangeiros. Ele, que conheceu o Brasil na sua juventude, escreveu no Cahiers du Cinéma de 1959 que Orfeu Negro demonstra uma “inautenticidade total”, e que não há nada de Rio ali.
É dessa forma que um filme, considerado francês, mas sobre o Brasil, com atores predominantemente brasileiros, inspirado em uma peça brasileira, falado em português, gravado no Rio de Janeiro, levou um Oscar para a França. Ainda que o Brasil esteja em coprodução, apenas a França foi reconhecida pela Academia. É importante mencionar que as premiações do filme, de todo modo, colocaram o Brasil em voga mundialmente. Isso animou os brasileiros, que aceitaram ao filme, com ressalvas.
Faço muitas críticas ao filme, mas indico que assistam. Principalmente porque ele é um marco na história da disseminação da cultura brasileira no mundo, num momento em que a cidade do Rio de Janeiro estava prestes a perder o posto de capital federal para a recém-inaugurada Brasília, em 1960.
Orfeu Negro fala algo de Brasil, por meio do olhar estrangeiro. A câmera, por vezes exploratória, tem o mérito de trazer algumas imagens mais documentais para a obra. Muito além dos desfiles das escolas de samba nas ruas, além da alegria inerente, do ritmo frenético da cidade, da cena emblemática no terreiro de candomblé, representando uma tentativa de Orfeu falar com a Eurídice. Nossa identidade nacional é composta por muitas raízes culturais, e o filme quis cristalizar uma única imagem.
Como escreveu Antonio Candido em Literatura e Sociedade (2000). Somos “um povo latino, de herança cultural europeia, mas etnicamente mestiço, situado no trópico, influenciado por culturas primitivas, ameríndias e africanas”.
Três anos depois da feitura de Orfeu Negro, “O Pagador de Promessas”, de Anselmo Duarte, também vencedor da Palma de Ouro em Cannes, iria lavar a nossa alma. Temos aqui um filme verdadeiramente brasileiro, falando de um Brasil real. Com certeza, um dos maiores representantes da nossa cinematografia brasileira.
Faço um convite aos leitores para que assistam tanto a “Orfeu Negro” como “O Pagador de Promessas” e observem, comparem e reflitam sobre os debates e representações propostas e tirem suas próprias conclusões.
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