Na Paris de 1984, Alice Guy-Blaché trabalhava como secretária em uma empresa de equipamentos ópticos. Dedicada, ela rapidamente se familiarizou com os equipamentos fotográficos. Com 21 anos, educada em conventos e com treinamento para o secretariado, ela se tornaria, em breve, a mais importante cineasta da virada do século.
No dia 22 de março de 1895, a jovem presenciou uma demonstração do Cinematógrafo dos irmãos Lumiére, um aparato em 35 mm que era 3 em 1: filmava, revelava e projetava. Ela assistiu, nove meses antes da famosa exibição pública no Grand Café, a projeção de ‘A saída dos operários da Fábrica Lumière’ (1895). Este filme apresentava uma cena dos trabalhadores saindo do estúdio dos irmãos, em Lion, e é reconhecido por muitos como o primeiro filme já produzido.
Percebendo o potencial do cinema, Alice acreditava que os filmes não deveriam servir unicamente para propósitos científicos, ou com o intuito de vender câmeras cinematográficas, mas sim como uma forma criativa de filmar, ao invés do simples registro do cotidiano. Bastante interessada nas produções cinematográficas, persuadiu seu chefe para que ele a autorizasse na produção de um filme curto. Gaumont aceitou, desde que ela continuasse com seus afazeres como secretária.
O resultado foi o filme La Fée aux Choux (A Fada do Repolho, 1896), feito com uma câmera de 60 mm da Gaumont, com direção, atuação, roteiro e produção de Guy-Blaché, uma história baseada em um antigo conto francês. Embora seja reconhecido por muitos como o primeiro filme de ficção da história, alguns estudiosos do cinema confirmam que o filme dos irmãos Lumiére L’Arroseur arrosé (O regador regado, 1895)é, de fato, o que provavelmente mereça esta honraria. Em ‘A fada de Repolho’, percebemos a atenção da diretora aos cenários, a utilização de luz natural, o trabalho cuidadoso com os objetos de cena e com a indumentária.
Após seu primeiro filme, Alice continuou produzindo, e podemos dizer que são atribuídos a ela mais de 1000 filmes, feitos entre 1896 e 1922. De secretária e gerente logística da Gaumont, momento em que tinha contato com os clientes e os engenheiros dos equipamentos fotográficos e cinematográficos, passou a exercer funções criativas na produção e revelação dos filmes, de modo que havia espaço para Alice trabalhar com todo o experimentalismo, manipulação e inventividade que lhe cabia, características típicas deste primeiro cinema.
A cineasta foi responsável por fortalecer um aspecto fundamental do cinema: a narrativa. Da diversidade de sua produção, observamos seu pioneirismo no desenvolvimento de personagens, inclusive a nível psicológico. Sua inventividade se deu desde a preferência por locações reais, nos efeitos estéticos do uso síncrono e assíncrono do som nos filmes da chamada era silenciosa (o cinema nunca foi mudo), na atuação dos atores, que eram encorajados a atuarem mais naturalmente possível, bem como com o pioneirismo no uso de close-ups para gerar um efeito dramático, inovação que é, geralmente, creditada a D. W. Grittith, mas que a cineasta já utilizava em filmes como “Madame a des envies” (1906), vários anos antes.
As temáticas trapalhadas nas obras fílmicas de Alice continham, constantemente, um tom de ironia e de crítica social, sobretudo em relação às questões de gênero. Com o cuidado para não fazer anacronismo e chamá-la de feminista, considero que seu trabalho pensava, ainda no início do cinema, as personagens femininas de maneira não simplificadora e generalista, apresentadas nas narrativas em diversos momentos da vida, de forma independente e donas do seus destinos.
Alice viveu até os 94 anos, tempo suficiente para ver, de forma triste e inexplicável, 1. a ausência do seu nome nos registros históricos sobre cinema; 2. suas contribuições na arte cinematográfica serem esquecidas; 3. suas inovações serem creditadas para outras pessoas, em geral homens que ela mesmo treinou em algum momento da vida; 4. além da constatação de que a maior parte dos filmes que ela produziu se perdeu. Alguns dos que restaram podem ser vistos no Youtube.
É inquestionável a importância de Alice Guy-Blaché para a história do cinema. Com o desenvolvimento da indústria, houve um total apagamento do seu nome, situação que vem sendo alterada só muito recentemente, com o esforço de historiadores do cinema para reconhecer sua importância. Documentaristas, atentos a essa injustiça, também começaram a fazer filmes jogando luz à história da cineasta, a exemplo de “Be Natural: The Untold Story of Alice Guy-Blaché”.
A indústria cinematográfica é um campo historicamente desigual para as mulheres. A história de Guy-Blaché só reforça as inúmeras injustiças e apagamentos que vivenciamos. Ainda hoje, a almejada igualdade de gênero está longe de se tornar uma realidade, por isso a importância dos feminismos, em todas as suas vertentes. Estamos em menor número na frente e atrás das câmeras. Nossas histórias e contribuições não são reconhecidas da forma que deveriam. Somos, em geral, representadas de forma estereotipada nas narrativas. No campo da arte, da cultura e da política, nos falta representatividade.
Por isso, assista filmes feitos por mulheres. Leia livros, críticas e textos escritos por mulheres, como tem sido proporcionado, em Blumenau, pelo belo trabalho do projeto Leia Mulheres. Em 2020, vote em mulheres, precisamos nos representar! Conheça nosso trabalho. Nos apoie! Quem não se vê no cinema, na política e em outros espaços, não acredita ser esse o seu lugar. Diminuir a desigualdade deve ser um posicionamento ativo de homens e mulheres que se importam com um sistema democrático, demanda mais que urgente em tempos de avanço do fascismos e da extrema direita e suas pautas patriarcais. A História do Cinema precisa ser reescrita!