Meus pais se mudaram da rua Mariana Bronnemann no bairro da Velha para o bairro do Garcia na minha cidade quando eu tinha dois anos e meio, o quarto do que mais tarde foram oito filhos. Me criei ali, até completar 24 anos, numa bela casa com imponente (pelo menos para mim) telhado tripartido, o principal e dois laterais em mansarda, os três em forma de “cabelo de moça”, estilo de penteado da Vera Fischer quando eleita miss Brasil em 1969.
A casa da rua Amazonas, número 1204 tinha três pavimentos: um porão com três cômodos, o térreo e o andar de cima que também poderia servir de residência independente. O terreno nos fundos atrás da casa ficava em uma baixada que ainda existe em parte, em cota bem baixa, sendo atingido por qualquer cheia acima dos 5 ou seis metros.
Em trinta anos foram mais de 40 alagamentos no terreno baixo, 27 enchentes no porão e no mínimo oito enchentes dentro de casa. A mais alta de todas, em 1983, chegou a 3 ou 4 degraus do piso superior. A enchente de 1984 foi 11 centímetros mais alta, mas, a família não morava mais lá.
Cresci grande parte de minha infância e juventude brincando naquelas baixadas brejosas e alagáveis. Observava as camadas de lama que cada enchente ali deixava. Aprendi na prática que umas depressões compridas que ali havia eram antigos leitos do rio Garcia. Muitos anos depois entendi por que mapas antigos mostram o leito do Garcia bem próximo à rua Amazonas, quando hoje se localizam a 100 metros de distância, mais próximos do início da rua Hermann Huscher e da Alameda Rio Branco.
Quando meu pai vendeu o terreno que tinha mais de 100 metros de fundo, descobrimos que ele não terminava mais na margem esquerda do rio, como constava na escritura e sim, uns 15 metros na margem oposta. Avançando seus meandros centímetro por centímetro, ou desbarrancando um metro aqui outro acolá em cada enxurrada, o rio foi mudando de lugar sem que percebêssemos, ao longo de mais de três décadas.
Assim como o rio erodia a nossa margem direita, ele depositava sedimentos na margem esquerda, porém a nova margem ficava em nível mais baixo e quase sempre alagava, seja nas enxurradas mais fortes do Garcia ou quando represado pelas cheias do rio Itajaí Açu, 1,5 km abaixo.
Quando fui cursar a Faculdade, estudando Geologia no curso de História Natural da Furb (hoje Biologia), depois Geologia da Amazônia no INPA – Universidade do Amazonas e ao longo da vida, ficou mais fácil para eu entender a dinâmica dos rios. Eles não são estáticos, mas, sim, dinâmicos. Mudam de leito ao longo do tempo.
Assim como depositam sedimentos nas baixadas contíguas, fazendo-as lentamente subirem de cota ao longo das décadas e séculos, também erodem e deixam baixadas, como aquela que descobrimos no outro lado, quando meu pai vendeu o terreno.
Nesse equilíbrio dinâmico os rios, salvo em trechos onde estão confinados entre sólidas rochas, ou quando nós, humanos, queremos lhes meter uma camisa-de-força, os rios trabalham, erodem aqui, depositam ali e não raro abandonam meandros inteiros, formando no lugar do antigo leito, lagos em forma de ferradura, comuns de se ver nas paisagens ainda não tão alteradas pelo homem.
Muitos dos pequenos lagos em ferradura, ou depressões longitudinais, como ainda hoje podem ser observados na Segunda Vargem, dentro do Setor Nascentes do Parque Nacional da Serra do Itajaí, na Nova Rússia (um precioso museu geomorfológico a céu aberto!), evoluem para pântanos ou brejos, riquíssimos em vida e berço de criação de inúmeras espécies que vão garantir a saúde e piscosidade dos nossos rios e mesmo influenciar na produtividade marinha, muitos quilômetros adiante.
Hoje, quando vejo matérias mostrando pelo mundo afora a construção ou recuperação de baixadas alagáveis, pântanos e brejos como elementos fundamentais para minimizar os efeitos das enchentes, podendo chegar a ser mais importantes ainda que obras estruturais, dentro do conceito de cidades-esponjas, lembro do brejo de minha infância no Garcia, que em parte ainda existe lá.
Lembro do respeitado Dr. Kokei Uehara, num congresso dentro da Escola Politécnica da USP em São Paulo, no início dos anos 1980 dizendo: “ai de São Paulo se forem aterradas as últimas baixadas alagáveis do rio Tietê”, O prefeito Jânio Quadros peitou a ideia e criou naquelas baixadas o Parque Ecológico do Tietê, área de laser em tempos normais e bolsão acumulador de água que minimizam as enchentes quando chove muito.
Sem querer, o polêmico Jânio Quadros se antecipou ao conceito de cidades-esponjas em São Paulo. Pouco, perto de tudo o que tem que ser feito, mas, melhor que nada.
Por aqui nas nossas cidades ainda existem muitas baixadas alagáveis, fundamentais na minimização dos danos das enchentes. Ainda temos a oportunidade de, mantendo-as e mesmo ampliando-as, chegar a aplicar o conceito, de aparência tão moderna, de cidades-esponja, quase de graça, comparado aos benefícios que sua implementação irá propiciar, dentro do princípio de que mais vale prevenir do que remediar.
Muitas cidades pelo mundo afora estão gastando verdadeiras fortunas pra aplicar o conceito de cidades-esponja. Fortunas bem menos caras que o prejuízo de mais de 8 bilhões de reais com a última enchente apenas em Porto Alegre – imagine-se em todo o estado gaúcho, onde bairros inteiros terão que mudar de lugar e cidades inteiras terão que se adequar a uma nova realidade.
Uma proposta muito simples pode fazer com que Santa Catarina dispare na dianteira deste conceito de cidades-esponja. Uma lei que proíba, por exemplo, qualquer aterro em toda e qualquer baixada alagável do estado já garantiria, a custo praticamente zero, a aplicação de grande parte do moderno conceito de cidades-esponja. Conceito que, na realidade, deve ser aplicado à toda geografia catarinense, não apenas nas cidades.
Aos que estão franzindo a testa pensando nos direitos de propriedade adiantamos que é perfeitamente possível a compatibilização deles com o interesse maior, da sociedade. Ou as centenas de bilhões de reais em prejuízos e pior, centenas de vidas humanas e animais perdidas, só para citar o caso gaúcho recente, não valem nada?
Ou vamos esperar o agigantamento dos efeitos das mudanças climáticas em Santa Catarina de braços cruzados, apostando apenas em obras estruturais que comprovadamente já demonstraram serem insuficientes, Rio do Sul, Taió e outros municípios do alto vale que o digam? Ou, talvez pior ainda, insistindo em obras conceitualmente ultrapassadas como as atuais obras na margem esquerda do rio no Centro de Blumenau?
Nesta imagem da então futura área de alagamento da Barragem Sul em Ituporanga, ainda em construção, quem é o menos inteligente: o pássaro Furnarius rufus (João-de-barro) que não sabe ler, ou o mamífero Homo sapiens, que, mesmo sabendo ler e tendo líderes até com curso superior, cometem o mesmo erro de permitir construções em áreas alagáveis? Foto Lauro Eduardo Bacca, em 31/12/1974.
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