“Gatos e cães, amigos do homem, inimigos da natureza”
Com relação ao conteúdo do artigo anterior, “Terra indígena sim, mas não sobrepondo Unidades de Conservação”, causou espanto a alguns uma preocupação aparentemente excessiva com coisas aparentemente insignificantes, como a presença de cães e gatos domésticos soltos ou errantes em áreas naturais. De fato, para a maioria das pessoas, nossos amigos cães e gatos não causariam qualquer dano significativo à fauna, e o impacto deles em Unidades de Conservação seria algo então desprezível.
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Nesta coluna, procuramos sempre tratar os assuntos ambientais com o devido embasamento técnico-científico, evitando meras opiniões ou achismos sobre essas questões. Respeitamos, porém, as opiniões, mesmo que não fundamentadas na realidade dos fatos. Esse respeito decorre da lamentável lacuna existente em nosso ensino fundamental e médio sobre assuntos como esse na maioria de nossas escolas, e da nossa falta quase crônica de verdadeira cultura ecológica, que leva a esse lamentável mal-entendido.
Viralizou na internet, na semana passada, a bela e rara cena de três pumas atravessando a nado o rio Palmital, entre Joinville e São Francisco do Sul. Se isso tivesse acontecido duas gerações atrás, o episódio teria terminado não em filmagem, mas em morte sumária por fuzilamento desses três magníficos exemplares de nossa fauna, com seus corpos e suas peles exibidas como troféus dos que os teriam matado, em verdadeiras poses de “heróis que venceram a fera”.
A imensa maioria das pessoas apreciou a cena como um belíssimo e raro flagrante da vida selvagem, ali, pertinho da maior cidade de Santa Catarina, e desconheço alguém que tenha se manifestado a favor do “extermínio desses perigosos animais”, muito embora ainda existam os que pensam assim.
Para atingirmos uma cultura ecológica verdadeira, teríamos que ter, nesse caso, uma espécie de empatia ecológica, segundo a qual entenderíamos que aqueles três pumas, nadando no meio do rio e longe da segurança da mata próxima, ante a aproximação excessiva de pessoas sobre barcos a motor, encontravam-se sob forte estresse e em situação de extrema fragilidade perante a presença humana. Sob uma cultura ecológica verdadeira, essa cena seria então observada e filmada a uma distância respeitável, privilegiando mais o bem-estar animal e menos uma boa imagem deles.
Voltando aos cães e gatos, qualquer um que pesquisar na internet e nas publicações de conceituadas universidades ou instituições ambientais governamentais vai se surpreender com as centenas, talvez milhares de trabalhos técnicos e científicos sobre os danos que esses carnívoros domésticos errantes causam na natureza, seja por predação, competição, comportamento de perseguição e afugentamento (nestes dois casos, principalmente os cães), transmissão de doenças e parasitas.
Comecemos pela questão numérica: na natureza, predadores de topo de cadeia alimentar necessitam de enormes territórios para sobreviver e, por isso, não causam desequilíbrio ecológico. Em condições ideais, sem a concorrência humana por suas presas, seja indígena ou, muitíssimo pior, não indígena, são necessários bem mais que 20 quilômetros quadrados de área para uma única onça-pintada sobreviver na natureza. Já a onça-parda ou puma necessita de 11 km², e uma simples jaguatirica, bem menor em tamanho que o puma, necessita quase outro tanto. Igualmente, é enorme a área necessária para sustentar um único gato-do-mato.
Nas condições de devastação ambiental atuais, nos ensina a especialista em felinos Cíntia Grinner, podemos multiplicar por 10 todas essas áreas necessárias para a sobrevivência de cada indivíduo dessas espécies. Dessa forma, todo o estado de Santa Catarina, por exemplo, mal comportaria uma população de apenas 210 pumas.
Já as populações de gatos e cães domésticos são incomparavelmente maiores do que as populações dos seus primos predadores naturais. Na Espanha, há um gato para cada 12 habitantes, o que resulta numa população de 4 milhões de bichanos naquele país; nos Estados Unidos, são 84 milhões de gatos, dos quais de 30 milhões a 80 milhões nas ruas, podendo predar animais silvestres.
No Brasil, o Censo Pet IPB de 2022 revelou uma população de um gato para cada sete habitantes, o que implica uma população de 29 milhões de gatos, a maioria acessando as ruas e áreas naturais, perseguindo e caçando tudo o que se mexe na sua frente. Mesmo que estejam bem alimentados, prevalece o instinto selvagem de garantir a comida do dia seguinte.
Nessa proporção, a população de gatos em Santa Catarina chega a 1,2 milhão de indivíduos. Os gatos-do-mato, primos nativos aproximadamente do mesmo tamanho dos gatos domésticos, dificilmente ultrapassarão, na melhor das hipóteses, pouquíssimos milhares de indivíduos nesse estado — algo como mais de cem gatos domésticos para cada gato selvagem competindo por presas. Desproporcional demais.
O gato doméstico ainda garante sua sobrevivência com a comida ofertada por seus tutores, enquanto os nativos, selvagens ou silvestres, como queiram, dependem única e exclusivamente deles mesmos para conseguir seu alimento, cada vez mais escasso na pouca natureza que lhes resta. Haja desequilíbrio ecológico!
Os números do avassalador impacto dos gatos domésticos na natureza variam, mas a espantosa ordem de grandeza sempre é a mesma. Gatos domésticos são responsáveis pela extinção de, no mínimo, 33 espécies de animais em todo o mundo. Felinos domésticos errantes matam por ano 2,4 bilhões de aves, 12,3 bilhões de mamíferos, 478 milhões de répteis e 173 milhões de anfíbios — só nos Estados Unidos, onde existe um bom levantamento desses fatos.
Ao cidadão comum brasileiro que nunca aprendeu isso numa escola que jamais ensinou tais fatos, a ignorância desses assuntos é perdoada. A técnicos do governo e, mais lamentável ainda, do ICMBio, que ignoram tais realidades, forçando a minimização do efeito da presença humana, seja indígena ou não indígena, junto com seus cães e gatos sobrepondo-se a Unidades de Conservação, tal ignorância, mais que imperdoável, é condenável.
Urge que técnicos do ICMBio, Ibama e, quando for o caso, também a Funai levem essas questões sempre em consideração antes de decidirem sobre a questionável presença humana sobrepondo-se a Unidades de Conservação — últimos e parcos refúgios que restam para permitir a precária sobrevivência de um sem-número de espécies nativas.
O Acampamento Ecológico na então agreste praia Brava, em Itajaí, reuniu lideranças e centenas de simpatizantes da Proteção Ambiental de Santa Catarina e de outros estados, numa espécie de concorrido Conclave Ambiental Campal. Foto: Lauro E. Bacca, em 02/10/1982.
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