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“Grafite é intervenção, manifesto social”; grafiteiros de Blumenau falam sobre vivências e expansão do movimento na cidade

Alexandre Chamba, Quikonuts e Pilaco relatam experiências, preconceitos enfrentados e espaços conquistados através do grafite

O grafite, assim como o rap e o breakdance, faz parte da cultura do hip hop que se popularizou nas periferias de Nova York na década de 70. O hip hop nasceu em meio ao movimento conhecido como contracultura, que tinha como objetivo reivindicar os padrões artísticos da época e expressar as vivências de determinadas comunidades por meio da arte.

Através da tinta em spray, o grafite traz cor, autenticidade e crítica social para os muros, paredes e fachadas das cidades. Ainda que enfrente dificuldades e preconceitos, a arte urbana vem conquistando o gosto dos amantes de pintura e estabelecendo cada vez mais seu espaço enquanto movimento artístico.

Grafite em Blumenau

Apesar de ser conhecida por ter a cultura germânica como predominante, Blumenau também conta com as manifestações advindas do hip hop. A região é berço para nomes conhecidos do grafite e possui espaços contemplados com a arte.

“A arte germânica é dita como a cultura da cidade, mas Blumenau é muito miscigenada. Acredito que aos poucos a cidade consegue dar vazão para outros tipos de arte e não só para Oktoberfest e clubes de caça e tiro, por exemplo”, afirma o grafiteiro Pilaco.

Grafite realizado por Pilaco e Quikonuts no iUP House Hostel Blumenau. Foto: Redes Sociais.

Alexandre Chamba é um nome muito importante para a história do grafite blumenauense. O artista, que hoje tem 44 anos, foi um dos pioneiros do movimento na cidade.

Chamba trabalha com criação e desenho desde os 16 anos, quando atuou em um jornal local como apontador de lápis para um desenhista. “Desenho desde moleque, enquanto a galera estava jogando bola eu estava na minha mesa de desenho”, compartilha.

No entanto, a arte de grafitar surgiu na vida dele em 1998, quando junto com um amigo, começou a estudar grafite. Ambos viajavam até São Paulo e Rio de Janeiro para regsitrar os trabalhos feitos e pesquisar no próprio local.

Chamba é influência para fãs de grafite e referência para artistas da região, como para o grafiteiro Pilaco, por exemplo.

Grafiteiro Alexandre Chamba. Foto: Redes Sociais.

Charles Boaventura Caetano, conhecido como Pilaco, tem 40 anos e vive da arte desde 2003. Ele possui um estúdio de tatuagem na cidade, porém, sua principal fonte de renda é o grafite.

Pilaco conheceu o grafite em 1997, quando começou a andar de skate. Ele conta que com a prática do esporte passou a dar maior atenção para os elementos que preenchem os arredores das ruas. Em uma de suas aventuras pela cidade, observou um grafite feito por Chamba e se encantou.

A partir dali, Pilaco começou a se dedicar para aprender e também praticar o grafite. Atualmente, grande parte dos trabalhos realizados pelo artista são inspirados na Mata Atlântica. Pilaco se especializou neste tipo de pintura por pura identificação e gosto pela natureza nativa do Brasil.

“De uns 15 anos pra cá eu me identifico muito com a natureza da Mata Atlântica. Fiz um estudo de mais de dez anos sobre tipos de arte, além de uma especialização em pássaros e plantas nativas, que teve duração de mais de oito anos “, relata o artista.

Grafiteiro Pilaco em frente a um painel pintado por ele. Foto: Redes Sociais.

Um dos parceiros e amigo que realizou muitos trabalhos com Pilaco é o Quikonuts. Com 42 anos, Quiko realiza pichações e grafite desde 1994, porém, foi a partir do ano 2000 que passou a se considerar um grafiteiro de fato.

“No ano 2000, comecei a buscar mais pelo conhecimento de arte e decidi estudar técnicas para me tornar de fato um profissional. Atualmente, o grafite já me proporcionou trabalhar com diversas empresas”, conta o artista.

No entanto, além de produzir arte para muitos negócios de Blumenau, Quiko também possui o seu próprio estabelecimento. Além de talento para a arte, o artista tem dom para a gastronomia, portanto, decidiu mesclar as duas paixões em uma hamburgueria.

“Sempre acreditei muito na imporância de sair da zona de conforto. Tenho aptidão pela gastronomia e cozinhava em restaurantes pequenos, até que decidi criar algo meu. Hoje em dia tenho uma hamburgueria e a visão dela é o grafite”, explica.

A pichação e o grafite

Uma dúvida popular é o que difere o grafite da pichação. Apesar de ambos serem reconhecidos pela realização em espaços urbanos, a principal diferença entre a pichação e o grafite é que a primeira advém da escrita, enquanto o segundo está mais relacionado à imagem.

“A pichação é uma arte caligráfica, porém em espaços não liberados. Ainda há muito preconceito, porque só conseguimos valorizar o grafite estético e esquecemos que antigamente havia uma grande valorização da caligrafia gótica. Por ser mais simples, a pichação carrega um peso estético”, afirma Quiko.

Assim como Pilaco, o skate também teve participação na história de Quiko com a arte. O artista conta que quando tinha 13 anos começou a pichar a partir de um grupo de skatistas do qual fazia parte na cidade de Vilhena, em Rondônia. Na época, ele começou a observar a rua e escrever seu nome nos locais, com os caractéres e traços particulares do “pixo”.

Entretanto, o ato era considerado vandalismo, por conta da lei que determina a pichação em edificações ou monumentos urbanos como crime ambiental. O grafite, por sua vez, é mais aceito do que a pichação e não é considerado crime, desde que tenha o consentimento do proprietário ou órgão responsável.

Arte do grafiteiro Quikonuts. Foto: Redes Sociais.

Grafite em pequenas cidades

De acordo com Pilaco, uma dificuldade enfrentada pelos grafiteiros de Blumenau é a burocracia para conseguir participar ou realizar exposições. Ele acredita que no Sul do país e principalmente em cidades menores, o trabalho é muito maior do que nas grandes metrópoles.

“Se você vai para São Paulo, tem o MASP com a arte de grafiteiros. Aqui em Blumenau, para expor seu tabalho numa galeria de arte contemporânea ou na Fundação Cultural, por exemplo, que deveria ser um espaço totalmente aberto pra isso, é muita burocracia”, desabafa.

Ele também afirma que o grafite é muito mais difundido nas comunidades do que nos centros. Segundo o grafiteiro, isso acontece porque o apoio da população desses locais é muito maior, uma vez que nos centros muitos enxergam o grafite como vandalismo e dificultam o processo para o artista poder se expressar.

“Eu queria muito que a nossa região procurasse entender o que o artista está tentando transmitir e não apenas julgar o trabalho. Um artista contemporâneo que está em uma galeria no shopping é muito reconhecido, mas uma arte na rua é considerado vandalismo”, lamenta Pilaco.

Obra de Pílaco na rua Marechal Floriano Peixoto, em Blumenau. Foto: Redes Sociais.

O preconceito

Durante tantos anos de trajetória no grafite, os artistas enfrentaram muitas dificuldades no caminho, sendo a luta diária contra o preconceito a principal delas.

Pilaco afirma que nesses mais de 20 anos em que grafita, já viveu todo tipo de situação. Ele fala que é difícil conhecer algum grafiteiro que nunca enfrentou problemas, tanto com a polícia quanto com civis, e relata a situação mais inusitada que já vivenciou.

“Estávamos pintando um muro de uma fábrica totalmente abandonada aqui em Blumenau num domingo. Quando estávamos terminando o grafite, um homem atravessou a rua com uma pistola, apontou para nós e mandou a gente ir embora porque senão ele iria atirar”, conta.

Pilaco questionou o motivo de o homem estar fazendo aquilo, e segundo ele, teve a frase “Não gostei do que vocês estão fazendo, quero que vão embora”, como resposta.

O grafiteiro também conta que determinada vez realizava um trabalho em um muro autorizado e foi surpreendido com a chegada da polícia. Segundo ele, as autoridades foram acionadas pelos moradores de um prédio à frente do local e foram até lá para averiguar uma denúncia de pichação.

“Como a cidade é menor, a visibilidade também é menor e você precisa quebrar vários estereótipos. São muitas as barreiras que precisam ser rompidas em comparação às cidades grandes, que já possuem essas questões mais difundidas”, afirma o artista.

Projeto feito por Pilaco e Quiko para o iUP House Hostel Blumenau. Foto: Redes Sociais.

Resistência e conquista de espaços

Em 2020, os artistas Quiko, Pilaco e Felipe Coff desenvolveram um trabalho de 480 metros quadrados para o estacionamento da sede da Central Ailos na rua General Osório, em Blumenau.

De acordo com Pilaco, o principal motivo para as atuais contratações de grafite é a facilidade de acesso à pesquisa e, consequentemente, a ação das empresas de contratarem pessoas específicas para fazerem estudos de tendências, o que possibilita a adequação da marca ao que está em alta no momento.

“Como o grafite é uma arte de rua, ele está quebrando uma elitização quando chega em lugares assim. Fazer trabalhos grandes para grandes empresas pode dar visibilidade e melhorar a questão do preconceito com o grafite”, diz Pilaco.

Grafite desenvolvido por Quiko, Pilaco e Felipe Coff para a Central Ailos. Foto: Redes Sociais.

Para Chamba, um dos motivos para o mercado estar mais interessado no grafite é o fato de as empresas perceberem cada vez mais como é positivo ter a marca vinculada com a arte.

“As pessoas têm percebido que deixar um espaço em branco não é tão legal quanto trazer a obra de um artista. Com o grafite, o espaço terá personalidade, além de instigar pensamentos e ajudar os artistas. Por isso, é interessante ter a sua marca atrelada à ideia de um artista inovador”, comenta.

 

Processo de criação

Conforme Chamba, para realizar uma arte que será grafitada com intuito comercial é necessário estudar o cliente. Os primeiros passos são analisar o briefing, que consiste em um resumo com as principais informações sobre a empresa, e também o branding da marca, ou seja, local inserido, identidade visual, cores predominantes, nicho que se enquadra, qual é a ideia da empresa etc, para tentar criar algo exclusivo.

Contudo, para o artista, a arte comercial não é grafite. “São só técnicas de grafite. Grafite para mim é intervenção, manifesto político e social, onde não existe uma autorização para poder pintar. Existe a visão de que o grafite é uma arte no muro, mas isso seria street art. Grafite é o que é considerado vandalismo”, defende Chamba.

Em relação ao processo de criação para artes não comerciais, Chamba opta por algo mais livre e sem regras. “Geralmente não pinto com esboços, gosto de sentir o ambiente e criar na hora. Então observo muito ao meu redor, pesquiso algo que eu queira representar, faço um banco de dados de referências, anotações e desenvolvo algo em cima daquilo”, compartilha o artista.

Trabalho realizado por Chamba e outros grafiteiros em Balneário Camboriú. Foto: Redes Sociais.

Inspirações

Todo artista precisa de inspiração na hora de criar e também de referências para aflorar a imaginação. Alguns se inspiram em pessoas, outros na natureza, em obras de arte ou situações.

Para Quiko, que já trabalhou com muitas vertentes de arte, a maior estimulação na hora de pintar são músicas, filmes, vídeos etc. “Sou o tipo de pessoa que quando está assistindo algo paro o vídeo e tiro print de coisas diferentes que acho interessante, para usar futuramente.”

Chamba diz que usa o estudo sobre paleta de cores como referência em seu trabalho para criar algo único e que venha de sua essência. Além disso, o artista cita nomes do grafite como “Os Gêmeos”, “Speto” e “Bispo do Rosário”.

Trabalho feito por Quiko e Felipe Coff no Moinho Market. Foto: Redes Sociais.

Materiais

O grafite é conhecido por ser uma arte que utiliza a tinta em spray como matéria prima. Afinal, o material possibilita uma secagem mais rápida e carrega maior densidade, o que faz com que a pintura fique mais homogênea. Todavia, outros materiais também são utilizados para compor os desenhos.

“Dentro da cultura do grafite, a pessoa apenas é um gafiteiro quando só trabalha com o spray. Mas, hoje o grafite é algo mais livre para mim, não me limito a trabalhar apenas com spray”, compartilha Quiko.

Para Chamba, não há um material certo para ser usado, uma vez que, para ele, o grafite é uma manifestação artística composta por muitas vertentes. “O grafite vai desde um lambe-lambe até uma arte gigante num prédio. Então temos o spray, rolo, pincés, cola, papelão, tinta acrílica, canetas posca, entre vários outros materiais e suportes.”

Foto: Alexandre Chamba / Redes Sociais.

Crews

No universo do grafite existem as chamadas “Crews”, que consistem em grupos grafiteiros que se reúnem para pintar. O artista Pilaco participa de três crews. A SN Crew (Somos Negros Crew), a qual foi um dos fundadore; a Prush Crew, em que os fundadores são ele e o Quiko; e, por fim, o artista também participa da Crew Cabelo Duro.

As crews possuem assinatura da determinada equipe, mas cada artista possui uma gestual, ou seja, um símbolo próprio. “Você vai ver um ‘SN’ na rua com uma gestual e depois a mesma assinatura com outra gestual. Por isso, as pessoas se confudem e pensam que não é a mesma coisa, mas é. Se trata do mesmo grupo, porém a obra foi feita por outro artista membro da crew”, explica Pilaco.

Arte de Pilaco. Foto: Redes Sociais.

O Rio de Janeiro

O interesse pelo grafite possibilitou diversas experiências marcantes para os três artistas. Os traços muito bem desenhados e as cores cativantes permitiram a vivência demomentos inesquecíveis e cruciais para a construção e trajetória dos grafiteiros.

Para Chamba, as melhores memórias relacionadas ao grafite são do tempo em que passou no Rio de Janeiro, grafitando sem nenhum fim lucrativo. Ele conta que invadia viadutos e tranformava lugares inusitados em palco para sua arte.

O Rio de Janeiro também foi sede para as melhores memórias do artista Pilaco. Foi no evento chamado Meeting of Favela que o artista conheceu pessoalmente muitas de suas inspirações. Para ele, foi um momento inexplicável.

O Meeting of Favela é um mutirão de arte urbana que ocorre anualmente e possibilita o encontro de grafiteiros do mundo inteiro. Durante dois dias, os grafiteiros se disponibilizam a colocar sua arte, totalmente livre, na comunidade de Duque de Caxias.

“Nesse mutirão conheci pessoalmente grafiteiros que só via através da internet. É inexplicável ver alguém que você é fã trabalhando ali na sua frente, acompanhar o processo criativo e ainda poder trocar uma ideia. É algo que a gente leva pra vida”, explica Pilaco.

Obra feita pelos irmãos Alexandre Chamba e Joba Borges no Museu de Hábitos e Costumes, em Blumenau. Foto: Prefeitura de Blumenau.

Trabalho em comunidades

Além dos trabalhos comerciais e nas ruas, Pilaco também realiza alguns projetos sociais envolvendo o grafite. Um deles é o ato de levar a arte para as comunidades e escolas de Blumenau e região.

O artista desenvolveu um projeto de dois anos e meio no Caic (Centro de Atenção Integral A Criança e Ao Adolescente), localizado no bairro Velha Grande. Outro projeto de três anos foi desenvolvido no EEB Frei Godofredo em Gaspar, em que a direção da escola o chamou para apresentar o grafite para os alunos.

“Sempre tento levar o grafite para as comunidades e escolas, totalmente sem ajuda da prefeitura ou qualquer órgão público. Tudo é posto em prática através da minha iniciativa com a direção da escola”, relata Pilaco.

O artista afirma que ver a reação das crianças quando estão em contato com o grafite é algo muito gratificante. “É muito legal poder levar o grafite para essas comunidades que não têm tanto acesso à arte. Ver um molequinho com os olhos brilhando quando você colore uma parede é muito gratificante. Essa troca me faz muito bem.”