O escritor blumenauense Godofredo de Oliveira Neto, membro da Academia Brasileira de Letras desde o ano passado, realizou uma sessão de autógrafos de sua mais recente obra, “O desenho extraviado de Hieronymus Bosch”.
O lançamento contou a presença de diversas personalidades, dentre elas, a veterana atriz global Fernanda Montenegro, na livraria Travessa de Botafogo, na terça-feira, 9.
A Profa. Ângela Maria Dias, professora titular de Literatura Brasileira e de Literatura Comparada da UFF fez a crítica da obra:
A vocação dialógica do romancista, tanto com a tradição artística ocidental, quanto com os problemas de seu país e a sua diversidade cultural, desenha um processo rico em contrastes e figura um profuso labirinto de intertextos.
Em “O desenho extraviado de Hieronymus Bosch”, a atualidade do traçado emaranha um conjunto vibrante de questões que dão à bricolagem de fragmentos do enredo, em primeira pessoa, uma palpitação de suspense pelas ações bem costuradas para o envolvimento do leitor.
De um lado, este romance curto apresenta com muita acuidade os últimos dramas do Ocidente e do país por meio da trajetória de seu personagem-narrador, o mestiço Luigi, de pai desconhecido e mãe de família italiana, designado para resgatar um esboço de um quadro de Hieronymus Bosch realizado entre 1475 e 1480.
Assim, o especialista em Letras, dublê de advogado, vê-se em Nova York — onde, inicialmente, supõe-se que esteja a obra — a fim de entrar em contato com um parente distante.
Em seguida, após esta primeira excursão resultar em fraude e fracasso, o protagonista dirige-se a Veneza, ao encontro de outro familiar desconhecido, onde, por fim, resgata a ambicionada herança.
O fio narrativo basicamente é este, mas sua simplicidade surge entremeada a muitos imbróglios e surpresas, a confundirem o herói inseguro, “ex-coroinha da igreja de Itajaí”, envolto em culpa cristã e sentimento de rejeição.
Dilemas ocidentais
Da mesma forma que o Fábio de “Amores exilados” (2011), Luigi, visto como nigger em Nova York, também se equilibra desastradamente na suspeita do triângulo amoroso com a amada Ana Júlia e o amigo Filipão.
Assim, a namorada, como a Muriel daquele mesmo romance, é situada na encruzilhada entre Dr. Jekyll e Mr. Hide e, vista sob o véu da dissimulação, aparece comparada à Capitu, à Joana de Clarice Lispector e à célebre Madame Bovary.
Desta maneira, neste teatro de ciúme e mania de perseguição, Luigi encarna Deus e o Diabo, entre a obsessão do subsolo, “a barata se arrastando devagar no esgoto”, e pesadelos de entremeio, na busca de seu velo de ouro: o esboço de “A extração da pedra da loucura”, de Bosch.
Aliás, o título dessa obra pictórica, de certa forma, alude ao desenlace do relato, numa espécie de clareira da esperança. Afinal, com a conquista do quadro, extrai-se, finalmente, a pedra…
Por outro lado, o périplo vem acompanhado de conversas de café sobre os dilemas ocidentais da “derrocada da noção de Estado democrático” e dos primeiros sintomas de uma “gripe estranha que pode ganhar o mundo”.
No Brasil, a pauta abrange não só “o modelo econômico recessivo imposto”, a “democracia antes de tudo”, e a necessidade de justiça social, como também a questão do país frente ao “resto da América de língua espanhola”, estranhada por Luigi, mas invocada em sua cafonice reconfortante.
Entretanto, se o engajamento na discussão de causas e impasses sociais está bem contemplado, igualmente a tendência ao ilusionismo da performance não é menos importante nos traçados de “O desenho extraviado de Hieronymus Bosch”.
Desse modo, o tema da falsificação de obras pictóricas, inerente ao “Menino oculto” (2005), aqui reaparece com o primeiro esboço posto em circulação pelos personagens de tio Domênico e de Sordi.
Também “A ficcionista” (2012), com sua escrita farsesca, é aqui aludido desde os paratextos: a dedicatória ao personagem Aimoré Seixas dos Campos Salles de Mesquita Ávila, de “Menino oculto”, e a epígrafe de Nikki, a personagem do romance de 2012.
Finalmente, a profusão de temas, bem entretecidos, compõe um painel que ecoa o caleidoscópio de incertezas, em “Amores exilados”. Nesse sentido, o problema do racismo, encarnado no protagonista, se enlaça com o enigma do feminino, em Ana Júlia, e se combina ao desejo de mudar o Brasil, mencionado com assiduidade pelos personagens mais atuantes.
Por fim, o Brasil dos últimos anos, com seus temas candentes, dá a este romance de 2023 não só o formato de uma estrela de muitas pontas, mas, também, o caráter de uma recriação ficcional do ar desses tempos recentes.