Heroínas: profissionais da linha de frente relatam exaustão após um ano de pandemia
Cansaço combinado com a falta de cuidados da população estão entre os principais desabafos
Nesta segunda-feira, 8 de março, é celebrado o Dia Internacional da Mulher. Criada para valorizar a igualdade de direitos civis das mulheres, como o voto, hoje a data foca na busca pela equidade entre os gêneros. Porém, com a pandemia de Covid-19, muitas mulheres sequer poderão pensar em ter um dia especial. Especialmente as profissionais de saúde.
Médicas, enfermeiras, técnicas de enfermagem, psicólogas, fisioterapeutas, farmacêuticas, nutricionistas… São diversas as funções necessárias para dar conta das demandas dos pacientes que foram acometidos pelo coronavírus.
O Município Blumenau conversou com quatro trabalhadoras que estão atuando na linha de frente para saber como foi este último ano de enfrentamento da doença. Uma coisa, todas têm em comum: estão cansadas após trabalharem exaustivamente, mas cientes de que a tendência é que a situação apenas piore em Blumenau e região.
Com a lotação dos leitos de UTI Covid chegando a praticamente todas as cidades do estado, as equipes acabam tendo de que desdobrar para dar conta dos pacientes que podem atender.
“Essas últimas semanas estão sendo nosso maior desafio. Tanto pelo excedente de pacientes, que está além da nossa capacidade, como pela equipe sobrecarregada. Todas estão muito cansados e os doentes estão vindo com problemas cada vez mais complexos. Não é só ligar e desligar um respirador”, relata a médica intensivista Georgeane Floriani.
“A carga emocional é muito grande. Para os funcionários, que estão sobrecarregados, para o pacientes nessa situação e para os familiares, que só conseguem contato se fizermos uma videochamada ou ligação”, desabafa.
Apesar de os leitos de UTI sempre terem sido escassos no Brasil, Georgeane ressalta que a lotação nunca chegou nessa magnitude. Especialmente porque neste momento o limite não é apenas de equipamentos, mas de profissionais habilitados.
“É desesperador ter que negar leitos de UTI. Já estamos trabalhando com excedente de leitos e pacientes, mas infelizmente existe um limite. O recurso humano é o mais precioso e mais difícil de se encontrar para trabalhar na terapia intensiva”, conta.
A enfermeira do pronto socorro do Hospital Santo Antônio, Marjana Almeida, conta que diversos colegas pediram demissão por exaustão. Sem contar os profissionais que precisam ser afastados após serem contaminados.
“A enfermagem como um todo está perdendo pro cansaço. Vários colegas com anos de profissão estão desistindo e pedindo demissão. Por medo ou para preservar a saúde mental. Hoje não temos mais uma escala fechada. Muitas vezes me ligam pedindo ajuda e eu vou, mesmo estando cansada e com medo. Mas sempre pensando nos pacientes”, justifica.
Infectologista dos hospitais Santo Antônio e Santa Catarina, Fernanda Arns relata que o expediente é de 24 horas, sete dias por semana. “O único horário que sinto que não trabalho é entre 1h e 6h. Se não estou presencialmente no hospital, estou virtualmente ajudando as equipes. Os relacionamentos são afetados porque não sei falar de algo que não seja Covid”, confessa.
Fisioterapeuta da UTI do Hospital Santa Isabel, Pamela Ribeiro da Silva, reforça o relato das colegas. Para ela, os pontos mais difíceis foram se distanciar da família, para mantê-los em segurança, e não ver uma luz no fim do túnel no tratamento dos pacientes.
“Normalmente temos esperanças com quase todos os pacientes de UTI. Agora não conseguimos ver o fim da batalha, nem mesmo com a vacina. E a população esqueceu da linha de frente. Se nós temos vontade de desistir, é porque as pessoas desistiram da gente”, define.
E além de se distanciar dos seus pais, avós e parentes, Pamela também sente pela distância que fica entre a família dos pacientes e eles. Se antes a tentativa era de sempre aproximá-los para auxiliar no tratamento, agora esse movimento foi impossibilitado. “Nesse ano tivemos que ver as famílias darem tchau pro paciente na porta do hospital e nunca mais vê-los. Isso abala muito nosso psicológico”.
“Nosso papel como enfermeiros é dar atenção para os pacientes. Muitos apareciam no pronto socorro mais porque precisavam conversar. Hoje nem conseguimos falar com eles direitos por conta da sobrecarga. Dói muito não poder dar a humanização que eles merecem. A sensação de impotência é muito grande”, lembra.
A enfermeira também fala sobre a dificuldade em lidar com os familiares dos pacientes. É preciso ter paciência e cuidado para explicar porque eles não podem ter acompanhantes, visitas e, me meio a todos os atendimentos, mantê-los bem informados do estado da pessoa amada. “Foi um grande desafio para todos diante do cenário de guerra que nos encontramos dentro dos hospitais”.
A médica Georgeane também reforça a sensação de desespero. Especialmente com a chegada da nova variação do vírus. Com o passar dos meses, a internação de jovens aumentou. Outro exemplo é Gaspar, onde todos os leitos foram ocupados por mulheres.
“É uma combinação muito difícil. Enquanto temos puérperas, gestantes e mulheres jovens na UTI em estado grave, as pessoas esqueceram o isolamento e os cuidados no dia a dia. Junto disso, mutações virais, possibilidade de reinfecção e vacinação lenta. Não existe luz no fim do túnel”, alerta.
Pamela, fisioterapeuta que atua diretamente com a respiração dos pacientes e se tornou tão necessária neste momento, relata que as relações com os pacientes foram fortemente afetadas. Para ela, é difícil ter uma conversa honesta sem trazer mais sofrimento para o doente e para a família.
“Teve pacientes da UTI que chamavam a gente para saber se íamos desligar o aparelho, ou se a família ia ficar sabendo quando fosse a óbito, mexe muito com nosso psicológico. Mas a gente tem que ser o positivo o tempo todo, mesmo sabendo que a doença é tão agressiva. Precisamos ser a base forte e armadura do paciente”, declara.
Já para Fernanda, a sensação de responsabilidade foi muito maior por ser infectologista. Enquanto no começo a maior preocupação era cuidar das equipes dos hospitais que ela trabalha e não infectar alguém, agora é garantir leitos para todos os pacientes.
“É muito difícil ouvir de um paciente que ele tem medo de não voltar para casa. Você vê o desespero no olhar de alguém que não sabe se vai ficar bem. E temos que ser fortes e responder que vai. O maior desafio é entender que as pessoas não escutam nossas recomendações e não mantêm as normas de segurança”, desabafa.
A médica intensivista Georgiane mora com o esposo, que também atua na UTI do Hospital Santa Catarina, mas reforça que os protocolos de segurança continuam sendo seguidos – no hospital e em casa. Especialmente com as novas mutações do vírus.
Já o esposo da enfermeira Marjana trabalha fora, portanto o medo de expor outras pessoas é maior. “Todos os dias estou em contato com pacientes contaminados, entubando pacientes grave e pensando que ao chegar em casa não posso encostar em nada antes de ir pro chuveiro”, conta.
Atualmente de férias, ela retorna ao pronto socorro nesta semana, e conta que o medo só aumentou. “Na primeira onda a maior parte dos pacientes era Covid. Focávamos naquilo. Hoje, a população não está se cuidando, então temos acidentes, crianças, gestantes e idosos com outras condições. É ainda mais complexo”, alerta.
Para a fisioterapeuta Pamela, o alívio veio especialmente da família. Em uma ligação de vídeo, eles pediram para ver o curativo. Por conta da pandemia, a mãe dela chegou a pedir para que ela mudasse de profissão para não correr tanto risco.
“Quando ganhei a primeira dose da vacina foi como ganhar a Copa do Mundo. Minha família toda me ligou. As pessoas esquecem que, além da linha de frente, tem uma família, companheiros, filhos, amigos que precisam ser fortes também”, lembra.
“A esperança era de que esse ano tudo estivesse normalizado, mas não é a realidade que estamos vivendo. O que esperamos é que todos se conscientizem, se cuidem mais para acabarmos com isso o quanto antes”, conta Marjana.
A enfermeira reforça que a palavra que fica é empatia. Pensar nos próximos, nos nossos familiares, vizinhos, profissionais de saúde e em qualquer pessoa que pode ser contaminada acidentalmente por qualquer descuido.
“A doença ainda está aí e hoje vemos que está acometendo cada vez pessoas mais jovens, sem comorbidades. O perfil de contaminação mudou muito. Vemos pessoas saudáveis morrendo no país inteiro. Não é só uma gripezinha”, lembra Georgeane. “A nossa única esperança é a vacina”, conclui.
Para Fernanda, o que falta é paciência. As pessoas se cansaram de seguir os meios de prevenção e relaxaram nos cuidados. “Não vamos recuperar as vidas que já perdemos, mas temos a missão de continuar nos cuidando. Não importa se você não liga se ficar doente, você pecisa proteger quem está ao seu redor”, alerta.
Caso contrário, para ela a única possibilidade é o caos. “Os números de contaminação e óbitos vai continuar aumetando. A falta de leitos vai fazer com que pacientes de outras doenças também acabem morrendo. O idoso que sofrer um infarto, quem se acidentar de moto, doenças graves que necessitam de UTI também ficarão sem leito”, conclui.