Josué de Souza

Cientista social e professor, é autor do livro Religião, Política e Poder, pela EdiFurb.

“O Brasil é como um ornitorrinco, um bicho difícil de definir”

Colunista remonta trajetória de Chico de Oliveira, sociólogo que morreu na última semana

Chico silenciou-se, porém deixou-nos uma obra fecunda

Esse ano o inverno tem sido extremamente severo com o Brasil. Não só em temperatura ou baixa luminosidade, característica marcante da estação, mas parece que, em tempos de escuridão, vozes e pessoas importantes que nos apontavam o caminho têm nos deixado.

Na última semana, no mesmo dia em que morreu o jornalista Paulo Henrique Amorim, perdemos também um sociólogo de incomparável calibre, Francisco de Oliveira, ou Chico de Oliveira, como era conhecido.

Chico era professor aposentado da USP e ficou conhecido por seus livros e artigos publicados na imprensa nacional. Com uma perspicácia e lucidez características, era capaz de prever cenários políticos. Manteve sempre coerência e firmeza em suas posições.

Chico, juntamente com outros intelectuais como Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso e José Artur Giannotti, fundou o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Este centro de pesquisa foi fundado por um grupo de professores e intelectuais de diferentes áreas do conhecimento e orientações ideológicas, que haviam sido afastados das universidades pela ditadura militar. Uma espécie de centro de resistência intelectual a ditadura.

Em sua obra, buscou entender a especialidade do capitalismo brasileiro.  Neste sentido, há dois ensaios que se destacam: “A Crítica à Razão Dualista” (2003) e o “Ornitorrinco” (2003). Neste último, o autor lança mão a uma metáfora para explicar o Brasil. Um animal que tem bico de pato e corpo de mamífero, um bicho difícil de definir.

Assim como nosso capitalismo, possui característica moderna, mas relaciona-se e se reproduz graças às relações econômicas arcaicas, rurais ou pré-capitalistas, que convivem em uma perfeita desarmonia.

Nisto, o autor contraria o senso comum que afirma que os elementos tradicionais da agricultura brasileira são vestígios do atraso. Para Chico, não são. Ao contrário, estes elementos são partes funcionais do capitalismo moderno.

Chico foi também um dos intelectuais fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), porém nunca deixou-se prender por amarras ou programas partidários. Foi um dos principais críticos do Lulismo pela esquerda. Chico apontava que a dependência da esquerda ao Lula, como principal líder carismático, é parte dessa estrutura socioeconômica que é presente desde Vargas, quando o Estado controlava o principal ator do sistema capitalista: o proletariado.

Sobre o último período histórico do país, ele chamou de financeirização da economia, pois combina trabalho barato com o domínio do capital financeiro sobre o capital produtivo.  Um processo que jogou o mundo em uma espécie de cassino globalizado onde vence quem é mais desregulamentado, mergulhando os países em uma verdadeira guerra fiscal, reduzindo cada vez mais a capacidade dos Estados de controle e planejamento sobre o capital.

Características estas que resultou na destruição da política como forma de construção de consenso entre a sociedade, na mesma hora que há um aprofundamento da coalizão de elites.

No topo do poder, articula-se país afora, grupos de empresariais com velhos e novos coronéis de oligarquias regionais. Aos partidos políticos restou serem conduzidos por pesquisas de opinião de intenção de voto e de imagem.

A luta partidária torna-se irrelevante e o debate político tem girado apenas em torno de escândalos derivados de corrupção.

Chico fisicamente silenciou-se, porém, ficou para nós, uma obra fecunda, onde a leitura e releitura é primordial para compreensão destes tempos difíceis que passamos, onde o arcaico apresenta-se com cara de moderno e o moderno e progressista é diariamente acusado de atraso. Um perfeito ornitorrinco.

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