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“Temos uma cruel cadeia de impactos que vai nos atormentar por conta da omissão das autoridades ambientais”

Crime ambiental impune: a importância do uso social da propriedade

Este texto foi tristemente inspirado em horríveis degradações da paisagem na região de Brusque – Guabiruba, mas, poderia ter sido inspirada em muitos outros municípios, com algumas honrosas exceções.

Seu Gelásio (nome fictício) resolve preparar o terreno de sua propriedade, situado numa encosta, para ali construir sua casa, ou para outra finalidade qualquer. Contrata uma empresa de terraplanagem e o trator vai demolindo e derrubando tudo. Critérios de cuidados ambientais preventivos, zero. Orientação de minimização de impactos ambientais por parte da prefeitura, pelo menos para efeitos práticos, também zero.

As frágeis entranhas do solo, sob forma de enormes barrancos escavados e barro depositado começam a aparecer, a se agigantar e ficarem expostas no terreno. O solo é profundo e argilo-arenoso, dos mais sujeitos à intensa erosão quando da ocorrência de chuvas.

Antes das escavações não havia erosão no terreno do seu Gelásio, pois tudo ali estava coberto por vegetação, parte floresta, parte pastagem e o perfil do terreno estava em seu equilíbrio natural. As chuvas, mesmo fortes, não causavam erosão, as águas desciam limpas pelas encostas e os rios também permaneciam quase sempre limpos, com suas calhas desobstruídas.

Com as obras de terraplanagem, Gelásio acabou provocando uma enorme barbárie ambiental e social, como veremos a seguir.

A enorme ferida aberta no terreno do seu Gelásio, atingida pelas chuvas, passou a sofrer intensa erosão. A cada chuva, milhares de toneladas de material descem morro abaixo, enchem as vias públicas de barro, lama, areião ou pedregulho, entope tubulações de drenagem e assoreia os cursos d’água.

As águas dos rios ficam extremamente barrentas e isso atrapalha, retarda, encarece e, muitas vezes, até inviabiliza o tratamento da água para uso público de sua cidade e de outras cidades mais abaixo. Além disso, o terreno do Gelásio, escavado daquele jeito, quebrou a beleza do lugar. Qual rasgão numa pintura artística, aquela terrível chaga aberta, em meio a tantas outras na região, deixaram feias e desoladoras as outrora belas paisagens do verde vale.

Seu Gelásio, como em todos os casos semelhantes, inverteu as camadas naturais dos solos. A fina camada superficial, a parte mais fértil e fonte de vida do solo, que a natureza levou séculos para formar, cavada primeiro e empurrada pelo tratorista, vai para a parte funda do terreno. As camadas inferiores, não férteis, são cavadas em seguida, cobrem e enterram a parte mais preciosa dos solos que fica lá embaixo, soterrada, com sua fertilidade longe do alcance das raízes das plantas. As plantas vão ter que se contentar com o subsolo exposto, a parte menos fértil.

Imaginem, caras leitoras e leitores, se Gelásio comprasse uma roupa manequim de Gisele Bünchen para a esposa nada parecida com a famosa modelo. Obviamente que a roupa não serviria. Então Gelásio providencia mil operações plásticas e intermináveis lipoaspirações para, enfim, sua amada poder caber na vestimenta adquirida. Absurdo, não? Mas foi exatamente isso que Gelásio fez com seu terreno.

Gastou fortunas para adaptar a topografia ao que ele quer fazer e não o contrário, quando poderia ter sido orientado a adaptar a construção à topografia, ao perfil do terreno, minimizando ao máximo a agressão e os impactos ambientais.

Depois de cada chuvarada, a prefeitura do município do Gelásio tem que limpar as vias públicas, despesas pagas com o suado dinheirinho dos nossos impostos. Enquanto isso não é feito, primeiro a lama e depois a poeira levantada pelos veículos infernizam a vida de todos os vizinhos.

O que não ficou nas baixadas e vias públicas, acaba, como dito acima, parando nas tubulações e calhas dos córregos e rios, prejudicando a vazão e agravando os efeitos das próximas enchentes e enxurradas, devido ao material ali acumulado. Devido a isso, a prefeitura da cidade e às vezes, até o governo do Estado, precisam frequentemente desobstruir e desassorear os rios, a altos custos para os cofres públicos.

O que o leitor diria agora de um médico cardiologista que, mesmo sabendo que seu paciente vive se empanturrando com dieta inadequada, nada diz? (prevenção). E que depois, num procedimento cirúrgico, ao retirar a placa de gordura que obstrui uma artéria coronária não a descarta, mas, sim, (remediação criminosa e desastrosa) cola essa mesma placa na artéria coronária vizinha, igualmente importante para a irrigação do coração, trocando seis por meia dúzia?

Nossas prefeituras e o IMA estadual, com raras e honrosas exceções, fazem exatamente como o mau médico cardiologista quando se trata de lidar com as artérias de nossas paisagens que são os rios.

Nada fazem para impedir a erosão (prevenção) e, quando dragam o material depositado no leito dos rios, proveniente das terras expostas como as escavadas no terreno particular do seu Gelásio, este material, na maioria das vezes, é simplesmente depositado ali mesmo, nas margens, que antes serviam de leito secundário dos rios (remediação desastrosa).

Com isso, os rios perdem ainda mais a capacidade de vazão. Consequentemente, as próximas enchentes e enxurradas ficarão ainda piores do que já eram, num círculo vicioso sem fim.

Os barrancos escavados (pode ser uma simples estrada de acesso mal planejada e mal feita), ainda, por romperem abruptamente um equilíbrio da encosta que ali existia há milhares de anos, podem provocar desabamentos, com prejuízos materiais e até perdas de vidas humanas, como no caso de quedas de barreiras, cada vez mais comuns em nossa região, fato cientificamente comprovado por pesquisas como as do geólogo Juarês Aumond, da Furb: na quase totalidade dos casos, esses danos e até eventuais perdas de vidas humanas, questões ligadas ao desmatamento à parte, são potencialisadas por escavações como a do seu Gelásio.

Claro que a lama que desce do terreno do Gelásio não é única. Isso acontece em milhares de outros terrenos escavados de forma semelhante nas nossas bacias hidrográficas. Dezenas de quilômetros abaixo, o que não parou nas ruas e baixadas, o que não entupiu tubulações e não assoreou os cursos d’água, vai contribuir para o rápido assoreamento do canal e das bacias de evolução dos portos de Itajaí e Navegantes.

Devido a isso, esses portos necessitam de um quase permanente trabalho de dragagem feita por navios-draga especiais que, como todos sabem, custam fortunas. O seu Gelásio, portanto, contribui para encarecer a operacionalidade dos dois mais importantes portos catarinenses.

A novela não para por aqui. O rio Itajaí, como tantos outros, lançando um gigantesco leque amarelo de lama no mar, provoca uma constante “chuva” de sedimentos que cobrem centenas de quilômetros quadrados do leito oceânico, causando um enorme impacto na maioria das formas de vida marinha. Organismos marinhos que dependem da filtração da água do mar para se alimentar, simplesmente desaparecem, afetando toda uma cadeia alimentar, peixes inclusive. É possível, portanto, que a terraplanagem feita no distante terreno do Gelásio, afete também a produtividade pesqueira marinha em nosso litoral!

O seu Gelásio não tem a menor ideia das consequências do que fez na sua propriedade. Mas, pasmem, leitores, muitas prefeituras, que têm a obrigação de sabê-lo, afirmam que não podem impedir obras de escavações como a dele. Temos então uma cruel cadeia de enormes impactos ambientais que vai nos atormentar durante décadas, tudo por conta da inépcia, acomodamento, omissão e total falta de responsabilidade das autoridades ambientais, tanto municipais quanto a estadual.

Gelásio, através do uso particular de sua propriedade, causou e causa terríveis e extensos danos à coletividade, mas, não paga nenhum centavo por isso. Os prejuízos ficam por conta dos órgãos públicos, que arcam com inúmeras e vultosas despesas que poderiam ser melhor aplicadas em outros setores da sociedade, como educação, saúde, mobilidade, segurança e mesmo em melhor planejamento ambiental. Num cenário ainda mais assustador, é possível que muitos prefeitos e políticos até gostem de tudo o que está acontecendo, para depois aparecerem como salvadores da pátria, mandando dragar rios e ribeirões (mesmo que sob forma de remediação desastrosa), entre outras obras.

O caso do seu Gelásio é um gritante exemplo da importância de se considerar o uso social da propriedade. Enquanto os órgãos de controle municipais e mesmo estaduais nada fazem para resolver essa situação na origem, na prevenção (“não podemos impedir, pois, não é um loteamento”, foi uma desculpa esfarrapada que ouvi), nossas comunidades e nossa economia e nosso meio ambiente se atolam e se afogam cada vez mais, nas consequências cada vez piores das enchentes e enxurradas que só tendem a aumentar, devido às já famosas mudanças climáticas em pleno curso. O leitor não acha que já passou da hora de mudar esse estado de coisas?

A mega-enchente de março-abril de 1974 quase varreu do mapa a cidade de Tubarão e outras, no Sul de Santa Catarina. Morreram 199 pessoas e 60 mil, dos então 70 mil habitantes, ficaram desalojados.

Esta foto mostra como o rio Tubarão simplesmente mudou de leito, deixando de correr no primeiro plano para correr na calha no centro da imagem. Para muitos, foi um recado da natureza de meio século atrás. (foto de Lauro E. Bacca, em 9 de julho de 1974).