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Moradores de Blumenau e região recorrem à cannabis medicinal como forma de tratamento

Preconceito ainda é a maior barreira para democratizar o acesso ao medicamento

A blumenauense Katia Mafra, como muitas mulheres da região, sempre se orgulhou da sua independência. Há 13 anos, quando se deparou com um divórcio, se viu obrigada a se mudar para casa dos pais, em Navegantes. Com um filho de 5 anos para criar, ela precisava de alguém para cuidar do pequeno Kevin enquanto ela trabalhava.

Katia trabalhava em uma locadora de veículos e tudo corria bem, até que, após muita dor, ela não conseguia mais mover o braço direito. Ela buscou um neurologista, acreditando se tratar de um problema no sistema nervoso. Após diversos exames para excluir outras possibilidades, veio o diagnóstico: Parkinson.

Aos 38 anos, Katia não quis acreditar. Ela não tinha tremores, sintoma mais popular da doença. Até procurou um especialista na área para confirmar a doença. Incrédula, a blumenauense sofreu um período depressivo de dois anos. Após passar um tempo com medicamentos que não funcionavam, os que traziam melhora também vinham acompanhados de efeitos colaterais graves.

Katia se tornou agitada, nervosa e extremamente emocional. Desenvolveu pressão alta e ainda estava com os movimentos comprometidos. Mas o maior problema foi a reação da empresa: um anos após o diagnóstico, eles decidiram desligá-la do cargo.

“Eles não viam mais utilidade em mim. Aquele dia meu chão se abriu, pois adorava trabalhar com eles. Nada foi pior do que ouvir ‘vai pra casa se tratar’. A gente se sente o pior dos humanos”, conta Katia.

Katia com o filho Kevin, hoje com 19 anos. Foto: Arquivo pessoal

Felizmente, ela conseguiu empego em outra locadora de veículos. Para provar que era capaz, ela ainda resolveu trabalhar em uma conveniência próxima, no Aeroporto de Navegantes. Katia estava trabalhando das 11h até a meia noite. Entretanto, a carga horária foi demais para a condição dela e a rotina durou apenas seis meses.

Com o apoio da empresa e o coração na mão, Katia se aposentou. A dificuldade em digitar tornou impossível continuar atuando. Apesar de não tremer, ela sofria com movimentos involuntários, além de ter problemas de equilíbrio. Acidentes domésticos, como quedas e queimaduras, se tornaram comuns.

Após nove anos sofrendo com o Parkinson, Katia soube por meio de um vizinho que a tia dele, que sofre de Alzheimer, estava se tratando com óleo de cannabis, a planta da maconha. Ela já tinha ouvido falar do tratamento pela internet e seguiu o conselho. Aos 47 anos, a vida dela mudou novamente.

“Eu não dormia mais. Na primeira noite, já dormi e foi uma benção. Me sinto mais calma e relaxada, consigo controlar meus movimentos. Não deixo nada cair no chão. Consigo fazer o que eu quiser e não fico mais parada. Não tive efeitos colaterais, só benefícios”, conta Katia, que começou o tratamento há três meses.

Apesar de ter uma boa noite de sono, Katia ainda sofre com as manhãs, quando os espasmos são mais frequentes. Porém, segundo ela, após o meio dia ela consegue fazer de tudo. Artesanato e dança de salão gaúcha são as duas paixões dela.

Katia ao centro com os colegas de dança gaúcha. Foto: Arquivo pessoal

Mas a maior alegria foi reduzir a quantidade de comprimidos. Ela continua tomando quatro remédios, mas de cinco doses diárias reduziu para duas. O óleo de cannabis é consumido três vezes ao dia, sendo duas gotas pela manhã e pela tarde e três à noite.

Katia foi acolhida pela família e pelos amigos. Apesar de nunca ter sido vítima de preconceito pelo óleo diretamente, ela considera ele “ridículo”. “Traz tantos benefícios! As pessoas pensam na maconha e rotulam errado. São pessoas de cabeça muito fechada. O que puder fazer de propaganda eu faço”.

Para o neurologista João Natel Pollonio Machado, o preconceito está envolto no fato de que as pessoas ainda ligam a planta apenas aos efeitos psicotrópicos – que altera os sentidos, como outras drogas psicoativas.

“O que existe é desconhecimento dos benefícios que essa medicação acarreta nos pacientes. Existe também preconceito por achar que todas as substâncias da maconha são psicoativas ou podem causar dependência. Mais uma vez é a ignorância que acaba causando barreiras para a sociedade possa avançar”, explica.

O neurologista defende que a criação de associações para facilitar o acesso à medicação é um sintoma de falha dos órgãos governamentais, que muitas vezes aumentam a polêmica em torno da legalização dos fins medicinais. “Todos acabam pagando o preço da ignorância, politização e ideologização deste assunto”, afirma.

Santa Cannabis

Na capital catarinense uma mulher com doença de Parkinson, assim como Katia, foi a inspiração para o início de uma associação. A Santa Cannabis, fundada em janeiro deste ano, busca facilitar o acesso de pacientes a médicos que prescrevem o óleo. Entre eles, estão neurologistas, pediatras e oncologistas.

Pedro Sabaciauskis, presidente da associação, recorreu à alternativa após sofrer com a condição da avó. Ao perceber que ela estava com a coordenação motora e social comprometida ele buscou médicos que recorressem a diferentes opções. Hoje, Edna de Figueiredo está com 82 anos e vive quase independentemente. Brinca, dá risada e conta piadas, coisas que antes não tinha mais capacidade.

“Quando chega nesse momento da vida, as pessoas deixam de lado preconceitos e até mesmo as leis. Elas querem encontrar resultado para salvar vidas”, explica Lyrion Matheus da Silva, integrante da Santa Cannabis.

Dona Edna ao lado do neto Pedro (à direita) e Marcus Bruno, integrante da Santa Cannabis. Foto: Arquivo pessoal

Apesar de ter menos de um ano, a associação já conta com mais de 150 pacientes. O grupo atende também atende pessoas com esclerose múltipla, autismo, câncer, ansiedade, Alzheimer, dores crônicas, fibromialgia, entre outras condições.

Além de conectar os pacientes a cerca de 20 médicos, a Santa Cannabis desenvolve eventos para conscientizar as pessoas sobre o cannabis como um medicamento. A associação já tem planos de expansão para outros estados, pois boa parte dos pacientes é de fora de Santa Catarina.

“O que barra o avanço do nosso trabalho é o preconceito. Por isso queremos difundir conscientização também. Muitos chegaram aqui sendo contra o uso, mas não tinham outra alternativa. Quando é sua ultima opção e dá resultado vai abrindo seus olhos”, comenta.

Em Blumenau, a Santa Cannabis está auxiliando dois pacientes que estão no estágio inicial do tratamento. Cidades próximas como Brusque, Pomerode e Jaraguá do Sul também contam com pessoas assistidas pela associação.

Acesso ao óleo da cannabis

É necessário entender que o processo é burocrático e, muitas vezes, demorado. Os tramites legais para importar o óleo da cannabis levam tempo. A forma recomendada por lei é importar o óleo por meio da Anvisa. O processo pode levar até 60 dias e o medicamento pelo levar outros quatro meses para chegar na mão do paciente.

Neste método, o óleo que dura cerca de dois meses custa em média R$ 2 mil. O maior problema, de acordo com a associação, é a questão da prescrição. Caso o médico perceba que é necessário mudar a dosagem do óleo, todo o processo deve ser feito novamente.

Outra forma é entrar na justiça para conseguir um habeas corpus que permita cultivar e produzir o óleo. Atualmente, apenas 48 pessoas possuem essa autorização no Brasil. “A boa notícia é que mais da metade foi conquistada esse ano. As coisas estão avançando, projetos de lei estão chegando e o debate está melhorando”, comemora Lyrion.

Para facilitar o acesso de pacientes que vêm de longe, a associação organiza mutirões de atendimento. Eles também analisam a situação financeira da pessoa. Muitos que não têm condição de bancarem o tratamento, recebem apoio de outros pacientes com maior renda.

Durante o tratamento, a coordenadora social do Santa Cannabis, Julia Haas, acompanha os pacientes. Semanalmente, ela conversa com todos para acolher as dúvidas e tranquilizar quaisquer preocupações.

“Pelo menos 70% dos pacientes apresentam melhorias. O restante não apresenta piora. Menos de dez pacientes tiveram efeitos colaterais, mas como a Julia acompanha eles de perto, logo corrigem ou param o tratamento”, explica Lyrion.

A associação Santa Cannabis não vende o medicamento, porém conecta o paciente com especialistas que o prescrevam. Além do telefone (48) 99993-6608 eles também atendem pelo e-mail contato@santacannabis.com.br.

Uso medicinal da cannabis no Brasil

Existe apenas um medicamento com extrato de cannabis que é registrado e autorizado no país, o Mevatyl. Entretanto, a prescrição dele é permitida apenas para pessoas com esclerose múltipla. A caixa, que dura no máximo dois meses, custa mais de R$ 2,8 mil. Ainda assim, a procura foi tão alta que o produto chega a esgotar nas farmácias.

A compra de qualquer outro produto à base de Cannabis sativa, espécie da planta, sem autorização judicial é ilegal no país. Entretanto, já existem forças tentando mudar este cenário. No dia 18 de novembro a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural aprovou um requerimento que pede uma audiência pública para discutir a liberação do plantio para fins medicinais.

“Eu mesmo como autor do requerimento não tenho a convicção formada em relação à comercialização da cannabis. Não queremos pender para um lado ou para outro, mas nós não podemos nos furtar desse debate”, explicou o autor do requerimento, deputado Fausto Pinato (PP-SP).

Um projeto de lei de 2015, assinado pelo deputado Fábio Mitidieri (PSD), também busca viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta. “Desde que exista comprovação de sua eficácia terapêutica, devidamente atestada mediante laudo médico para todos os casos de indicação de seu uso”.

“Vale salientar que a cannabis tem sido utilizada como planta medicinal por vários anos, bem antes de passar a ser considerada proscrita em face do desvio de seu uso”, defende o deputado sergipano.