Por que assistir em 2020, um filme feito cem anos atrás?
Nessa semana, faço um convite aos leitores para conhecer (caso ainda não conheçam) um filme marco do cinema expressionista alemão, lançado na Alemanha há um século. Estou falando de O gabinete do doutor Caligari (Robert Wiene, 1920), um clássico que colocou o país no debate cultural internacional, e que gera discussões sobre as suas possibilidades artísticas ainda hoje. Sendo este o primeiro filme de terror da história do cinema, considerando a junção de várias convenções que reconhecemos nos filmes de hoje. Por isso, em 2020, celebramos também o centenário de todo o gênero do terror.
A narrativa apresenta Francis e seu amigo Alan, que um dia visitam o gabinete do Doutor Caligari, dentro de uma feira de variedades em uma cidade de região montanhosa. No dia anterior ao início da feira, Caligari divulga seu show afirmando que Cesare é um sonâmbulo que pode prever o futuro, e convida as pessoas a assistirem à apresentação no dia seguinte.
Durante a apresentação, o sonâmbulo afirma a Alan que ele só viverá até o amanhecer. Como previsto, Alan acorda morto no dia seguinte, fazendo Francis suspeitar de Cesare. Ele então começa a espionar o que o sonâmbulo faz com a ajuda da polícia. Para descobrir todos os mistérios, Francis acredita só haver uma solução: adentrar no misterioso gabinete do Doutor Caligari.
Te garanto que a narrativa por si já prenderá a atenção. Mas o que mais te afetará serão os elementos visuais, como os cenários distorcidos e os jogos de luz e sombra salientando a atmosfera estranha, sinistra e obscura do filme. Importante ressaltar que os efeitos de um claro-escuro já existiam antes de Caligari. Impressiona o trabalho da direção de arte. Sabemos que os cenários, por exemplo, eram todos pintados, obedecendo a uma outra lógica geométrica, um tanto irregular, torta, angulosa e deformada.
O cinema expressionista da época, com suas simbologias macabras, respondia esteticamente a conflitos emocionais. Segundo a crítica e historiadora do cinema, Lotte Eisner, “essa fantasmagoria estranha, que ao mesmo tempo atrai e repugna, fez a reputação do cinema alemão no estrangeiro”. O gabinete do Doutor Caligari, desse modo, influenciou todo um gênero de cinema fantástico, terror, noir, gótico, e diretamente vemos essa influência em diretores como Hitchcock, David Lynch e Tim Burton. Para mim, O gabinete do Doutor Caligari é um dos maiores filmes da história do cinema.
A importância do ambiente de penumbra era tão significativo, que as sombras, os cantos escuros e os contrastes nas cenas eram todos pintados e demarcados nos chãos e nas paredes. A atuação do ator que faz o Caligari, Werner Krauss, é também formidável. O personagem Caligari, com seus gestos exagerados, é um ser totalmente demoníaco e asqueroso, que nos faz sentir uma repulsa enorme.
Respondendo à pergunta que me propus, dos motivos pelos quais se deve assistir a uma obra cinematográfica de um século atrás, eu diria que além da perturbadora concepção visual já mencionada, o filme é, de forma simples, uma baita aula de cinema. Funciona ali, equilibradamente, o trabalho dos atores, da direção de arte, da fotografia, dentro de um inventismo e experimentalismo que elevou a mise-en-scène a um outro patamar, provocou uma revolução estética. Olha aí o cinema confirmando seu lugar irremediável na modernidade, mostrando, em 1920, que veio para ficar. Os filmes de terror que hoje gostamos, que hoje nos assustam, devem muito ao Caligari.