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Tráfico de crianças em Blumenau: mãe procura filho desaparecido há 37 anos

Mulher acredita que o filho foi vendido após ter sido enganada em 1983

“Ás vezes eu ando na rua, olhos pros homens e me pergunto se meu filho se parece com eles, se ele é daquele jeito, se podem ser ele”. A frase dita com a voz embargada, enquanto as lágrimas caem no rosto, é de Sônia*, que acredita que seu filho foi vendido em 1983, após ser enganada pela madre superior que atuava no Hospital Santa Isabel.

A história trágica na vida de Sônia começou cedo, bem antes da confusão envolvendo a criança. Moradora de Blumenau, aos 14 anos ela foi abusada sexualmente.

Ao denunciar a violência, foi culpada, agredida e expulsa de casa. Na rua, conheceu um homem que prometeu cuidá-la, dar casa, comida e uma vida melhor. Ela acreditou, se apaixonou e teve um bebê. Porém, em meio a tudo isso – que aparentava ser bonito – haviam mais situações violentas.

“Ele bebia, me batia, me deixava passar fome. Era um monstro”, conta Sônia, envergonhada por ter acreditado no homem.

Ela conseguiu se livrar do companheiro e voltou pra casa, mesmo com algumas restrições. Mas para ela estava melhor que antes: pelo menos o filho tinha onde dormir. A criança ficava mais com a avó do que a mãe, já que Sônia precisava trabalhar fora para conseguir se sustentar.

O tempo foi passando e as dificuldades aumentando. Sônia conta que praticamente morava mais na rua, do que no rancho, onde os pais estavam. Foi quando ela recebeu uma proposta para trabalhar em São Paulo, na casa de uma família.

“Um homem com aparência de rico, com um carro bonito, veio na casa dos meus pais me oferecer esse emprego. Disse que a esposa dele ia gostar de mim, que eu ia viver melhor… eu acreditei”.

Acontece que não era como Sônia imaginava. Ao chegar em São Paulo, ela descobriu que o “tal homem rico” era uma espécie de “cafetão”, que a obrigou a ir para rua se prostituir.

A jovem estava grávida. O homem tentou por diversas vezes fazê-la abortar lhe dando “bebidas estranhas”. A última tentativa foi colocá-la em uma clínica para fazer o aborto.

Sem querer tirar a criança, Sônia fugiu da clínica, e ficou algum tempo na rua, até conseguir retornar a Blumenau.

Após passar por tudo isso, sem condições de manter a si e preocupada com o que poderia acontecer com o filho que iria nascer, Sônia foi orientada a procurar a madre responsável pela maternidade do Hospital Santa Isabel.

Ao conversar com a freira Magdalena Tondim, conhecida como irmã Emélia, Sônia contou as dificuldades que passava e pediu uma ajuda para saber o que poderia fazer.

“Ela foi muito gentil e me perguntou se o pai era alemão, se era clarinho. Eu disse que sim. Aí ela me disse que poderia ter uma solução, que eu poderia doar essa criança para uma família que estava querendo adotar um bebê. Ela chegou a dizer que ele era piloto de avião, falou várias coisas, que eles iam dar uma vida boa pra ele, que ele seria feliz. Eu achei melhor, já que eu estava naquela situação”.

O tempo passou e o dia do menino nascer chegou. Era noite do dia 16 de setembro de 1983 quando Sônia foi ao hospital com a bolsa já estourada. Lá, ela passou por uma cesária. Ela não sabe dizer, contudo, se o bebê nasceu naquela noite ou já na madrugada do dia 17.

“Eu percebi que fui muito bem tratada. As mulheres do meu lado não tinham a mesma atenção. Eu não paguei nada e fiz uma cesária, mas na hora nem desconfiei de nada, até porque a madre estava sempre comigo”, relata.

Após a cirurgia, Sônia afirma que o único contato com o filho foi o som dele chorando e se afastando, indo para longe.

“A minha irmã foi me visitar, e escondida de mim ela viu ele. Disse que era a coisa mais linda que ela já tinha visto”, contou Sônia, mais uma vez com lágrimas escorrendo no rosto.

Pouco tempo após ter feito o parto, a madre levou Sônia até um cartório, onde a fez assinar um documento, que ela não sabe dizer qual era, já que estava confiando totalmente na freira.

“Eu só fui perceber que podia ter sido uma venda, um tráfico de bebês, quando ouvi no rádio, anos depois, que essa situação estava sendo investigada e que outras mães haviam passado por coisas parecidas”.

Tráfico de bebês em Blumenau

A possível existência do tráfico ou adoções irregulares de bebês em Blumenau foi alvo de investigações da polícia e Justiça em 1986. Quando essa situação se tornou pública, rádios e o Jornal de Santa Catarina divulgaram, e foi aí que a Sônia ficou sabendo.

O jornalista Carlos Tonet tinha cerca de 24 anos na época e era repórter do Jornal de Santa Catarina. Ele foi o responsável pelas matérias publicadas naquele período. Sem citar nomes das pessoas com quem conversou e serviram como fontes, Tonet afirma veementemente que tudo que foi publicado foram fatos.

“Não sei dizer se houve vendas, tráfico, ou se era uma fraternidade, envolvendo madre, juízes, médicos, enfim, pessoas da alta classe que queriam fazer o bem, que estavam realizando essas adoções para dar aos bebês uma vida melhor. Mas que isso aconteceu, aconteceu”, relata.

O jornalista Carlos Tonet cobriu as denúncias de adoções irregulares nos anos 80. Foto: Jotaan Silva / O Município Blumenau

Sem conhecer o caso de Sônia, Tonet, na época, falou de outras mães. Uma das histórias que o jornalista lembra é de uma adolescente pobre e semianalfabeta, de 17 anos, que também teve uma criança no Hospital Santa Isabel.

“Ela disse que no dia do parto, a freira mostrou pra ela o bebê errado, um bebe prematuro, com problemas de saúde e que precisava ser adotado por alguém que tivesse condições. Com isso ela aceitou entregar a criança”, conta Tonet.

O problema, segundo ele, é que depois, em um cartório onde iria oficializar a entrega do filho, a mãe percebeu que o bebê era outro, que estava saudável e por isso se arrependeu, mas aí não teve volta.

Um outro caso relatado por Tonet é de uma certidão falsa de parto, assinada por um médico do hospital. 

“Eu consegui essa certidão, eu coloquei na capa do jornal. Essa certidão foi usada pra uma mulher sair daqui com uma criança, dizendo que tinha tido o filho, mas ela nunca esteve grávida. Na época ninguém negou, todo mundo reconheceu mesmo que a certidão era falsa”, lembra o jornalista.

Segundo ele, um juiz que estava envolvido em todo o processo chegou a procurá-lo na época, depois da reportagem veiculada.

“Ele me disse que tudo foi para ajudar, que o médico tinha boas intenções”, complementou Tonet. Segundo ele, os processos nunca comprovaram ou condenaram nem hospital nem ninguém supostamente envolvido.

A irmã Emélia por exemplo – citada por Sônia – , foi investigada na época pelos dois casos que vieram a público. Em sua defesa, ela afirmou que no ato envolvendo o bebê “que teria nascido prematuro” a intenção foi ajudar, já que a mãe não tinha condições de criar um filho.

Já no segundo caso, envolvendo a certidão falsa, a mãe biológica do bebê era uma prostituta que fugiu do hospital, deixando a criança no local. A madre já faleceu.

Osmar Dagnoni é ex-delegado de Polícia Civil, e atuava em Blumenau em 1986. Mesmo não tendo participado das investigações, ele afirma que lembra vagamente dessa situação, que passou por colegas delegados da 1º Distrito.

“Eu não toquei nisso aí. Mas sim, teve investigação, mas lembro que tinha muitas controvérsias também. Do pouco que eu lembro, não foi muito pra frente”, contou.

Rede de tráfico de crianças em Itajaí

Na mesma época, nos anos 1980, foi descoberta e comprovada no Sul do Brasil uma rede de tráfico de crianças brasileiras que estavam sendo levadas para países como Israel e outras nações da Europa. Em Santa Catarina, casos mais próximos a Blumenau foram confirmados em Itajaí. A Polícia Federal estima que quase 12 mil recém-nascidos tenham sido vendidos para famílias do exterior.

Arlete Hilu ficou conhecida como a responsável por essa rede e foi denunciada pelo tráfico internacional de bebês, com preços que variavam de 5 a 50 mil dólares por criança. Ela foi presa pelo menos duas vezes pelo mesmo crime, mas depois libertada.

Arlete Hilu estava morando no estado e concedeu entrevista para a Record em 2016. Reprodução / Record

Os supostos casos em Blumenau chegaram a ser relacionados, já que a primeira denúncia contra Arlete foi realizada no mesmo ano, em 1986. Porém, nunca houve comprovação de que Blumenau esteve no raio de circulação da rede de tráficos.

Em 2018, o jornal O Globo, publicou uma reportagem sobre brasileiros que estavam retornando de Israel para tentar encontrar seus pais biológicos, pois ficaram sabendo que haviam sido vítimas desta rede. A maioria era natural do Paraná e Santa Catarina.

Alguns sites de “desaparecidos” destacam também histórias de pessoas que descobriram que foram vendidos do sul do Brasil quando bebês, e que agora tentam encontrar a família verdadeira.

O site desaparecidos do Brasil ajudou pessoas a procurarem a família

O sonho quase impossível

Sônia conta que foi convencida que a melhor coisa a se fazer com o filho que estava para nascer era doá-lo para uma família que pudesse criá-lo bem. Porém, quando soube de uma possível venda, ficou desesperada, já que nunca concordaria com tal atitude.

“Imagina, nenhum dinheiro do mundo me faria fazer isso. Eu queria o bem dele, tenho medo do que pode ter acontecido”, relata.

Sônia publicou em vários grupos do Facebook a procura pelo filho desaparecido em Blumenau em 1983. Mas até o momento nenhum sinal ou ajuda para encontrá-lo ela recebeu. Pelo contrário, foi alvo de ofensas em comentários de pessoas desconhecidas.

“Sou muito julgada pelas pessoas. Mas elas não conhecem meu sofrimento, não sabem de tudo que passei, nem como é saber de tudo que aconteceu. Eles me detonam, mas mesmo assim continuo publicando. Eu queria saber que ele está bem, que está vivo. Se eu souber disso já estou feliz. Se ele não quiser me conhecer, tudo bem, mas se eu souber dele, quem sabe ver ele de longe, pra mim já vai ser maravilhoso”.

Antes das redes sociais, ela chegou a contratar um advogado para tentar buscar informações, mas disse que foi “dinheiro gasto pra nada”, já que não recebeu nem um fio de esperança. Nem registros de entrada ou saída dela ou do nascimento do bebê foram encontrados no hospital.

O Hospital Santa Isabel era de responsabilidade da Sociedade Divina Providência do Brasil desde a abertura até 2015, quando passou a ser administrado pela Associação Congregação de Santa Catarina.

* O nome Sônia é fictício, para preservar a identidade da mulher, que não quis se identificar devido aos ataques que vem sofrendo.

* O filho de Sônia nasceu entre o dia 16 e 17 de setembro de 1983, ou seja, está com 36 anos atualmente.