“Uma verdadeira guerreira”: Família e amigos relatam jornada de Mariângela contra Covid-19

Primeira vítima do novo coronavírus em Indaial faleceu neste fim de semana

Aos 63 anos, a indaialense Mariângela Leão da Silva Antunes se recuperava de um câncer de mama. Após remover os dois seios, passar por cirurgias, diversas sessões de quimioterapia e dezenas outras de radioterapia, ela estava no caminho para superar a doença.

O que a professora não esperava era ser acometida por um vírus com altas taxas de letalidade para pacientes como ela. Idosa, diabética, hipertensa e ainda debilitada por conta do câncer, a Covid-19 levou Mariângela rapidamente.

Os primeiros sintomas começaram no dia 21 de março. Casada com um médico oftalmologista que atua em Blumenau, ele acompanhou de perto a esposa enquanto aguardavam o resultado do exame.

Por também fazer parte do grupo de risco, Fernando Antunes, 67, estava em casa com ela até a confirmação da doença, no dia 28. Dois dias depois, ela já estava entubada na UTI do Hospital Santa Isabel respirando por aparelhos.

Facebook/Reprodução

“O amor entre as pessoas faz com que você não seja tão cauteloso. Mesmo após o exame, eu dormia na mesma cama que ela. Impressionantemente, realizei o exame duas vezes e o resultado sempre foi negativo”, conta Antunes.

A luta de Mariângela teve fim na madrugada deste domingo de Páscoa, 12. De acordo com o esposo, o pulmão dela já não conseguia mais trabalhar e logo o coração também não teve mais forças.

“Eu gostaria muito de mostrar minha esposa na UTI ligada a aparelhos de hemodiálise, ventiladores e remédios para os governantes verem a ‘gripezinha’. Não podemos de maneira nenhuma subestimar a violência dessa pandemia. É um período de guerra”, declara o médico.

Preocupado com a subnotificação de casos de Covid-19 por falta de exames, o viúvo e especialista acredita que o isolamento social é a melhor medida para conter a disseminação do vírus.

“Parece que a natureza tem consciência de nos afastar para que aprendamos a tratá-la com mais dignidade, com mais presteza e com mais respeito. Caso contrário, vamos pagar contas como essa, de não podermos nos despedir sequer dar pessoas que amamos. Esse vírus é especialmente cruel, mas precisamos manter o distanciamento”, desabafa.

Ele relata que, além da dor da perda, ainda precisa lidar com um grande processo burocrático. Por conta da quarentena, as providências jurídicas e legais para tomar medidas como encerrar as contas pessoais da esposa, estão sendo mais trabalhosas e caras.

Mãe e professora

Mestre em educação, a socióloga e licenciada em Geografia deu aulas da disciplina em diversas escolas de Indaial. Mariângela também atuou na Secretaria de Educação do município durante o governo de Olímpio Tomio (PT).

Na cidade, também marcou presença como presidente do Sindicato dos Trabalhadores Serviço Público Municipal de Indaial (Sinserpi). “Ela sempre foi muito ativa e lutou pelas ações sociais. Era uma verdadeira guerreira”, lembra o marido.

Natural do bairro Encano Baixo, Mariângela deixa dois filhos. Vitor, de 36, também é médico e atua como patologista em São Paulo. O mais novo, Vinícius, de 33, também mora na capital paulista e é diretor de arte.

Arquivo pessoal/Especial O Município Blumenau

“Desse episódio todo, o que mais me encanta é o amor dos meus filhos. Eles largaram suas vidas para nos acudir numa hora tão triste e difícil. Os dois têm sido de suma valia para mim”, conta o pai.

Fernando Antunes expressou imensa gratidão a todos amigos e familiares, mesmo os mais distantes, que neste momento demonstraram apoio à família.

“A solidão tem duas faces. Uma é a opção de querer ser só, mas tendo a liberdade de buscar companhias. Essa solidão imposta por esse vírus é cruel, você não tem o direito de buscar companhia. Meus filhos se arriscaram vindo até aqui, mas foram movidos por amor”, diz.

“Ela continua sendo parte do nosso grupo”

Grande conselheira, mãe leoa, apaixonada pelo esposo, a alegria da festa, cheia de bom gosto e com uma personalidade única. Mariângela é lembrada pelas amigas com muito carinho e saudade. O grupo “champanhe&caviar”, hoje composto por oito mulheres, começou a mais de uma década.

“Ela sempre tava com o astral lá em cima. Foi uma mulher de muita luta, mas que nunca deixou a peteca cair. Sempre animada, sempre com gosto de estar junto da gente. Sempre disposta nas pequenas viagens e muitos momentos de alegria que tivemos. Com certeza ela estará junto com a gente cada vez que nosso grupo se reunir”, conta Márcia Huebes.

Mariângela em sua última celebração de Natal com as amigas, usando óculos. Na foto: Márcia Huebes, Solange Pizatto, Fabíola Machado, Soeli Krause, Vera Soar, Fabiane Hatsamura e Sueli Lorenze. Foto: Arquivo pessoal/Especial O Município Blumenau

Todas mencionam a luta de Mariângela não apenas por ela mesma, mas pela sociedade. Além do legado como professora, ela é lembrada como alguém de coração generoso que sempre batalhou pelos menos favorecidos.

“Sinto como se isso não estivesse acontecendo, que de repente ela vai mandar um áudio contando que vamos nos encontrar, que ela está bem”, desabafa Fabíola Machado.

O grupo de “jovens senhoras”, como elas mesmas se descrevem, ainda não sabem como nem quando irão se reunir novamente após a perda da amiga. Os encontros organizados para relaxar e se divertir aconteciam esporadicamente. Às vezes apenas um café da tarde e em outras uma viagem para a praia.

“Quando estávamos juntas éramos muito felizes e ríamos demais. Mariângela é uma pessoa fantástica, simplesmente extraordinária. A única coisa certa nesse mundo é a morte, mas é a mais difícil de admitir”, se emociona a amiga.

Homenagens estaduais

Filiada ao Partido dos Trabalhadores de Indaial, Mariângela foi homenageada pelo presidente estadual do partido, Décio Lima. Em uma publicação na página do PT de Santa Catarina, a professora foi lembrada:

“Mariângela jamais fugiu da luta e nos deixa um legado de amizade, lealdade e luta pelos direitos dos menos favorecidos. Educadora e também dirigente sindical, jamais se curvou diante dos obstáculos e carregava consigo o amor pelo próximo”.

Cremação sem velório

De acordo com Fernando Antunes, a Central Funerária de Blumenau determinou que Mariângela fosse cremada sem velório. Não houve celebração de despedida para a indaialense.

“Fico com essa dívida para com vocês, que gostariam muito de dar um último adeus a Mariângela, mas esse vírus nos cobra esse distanciamento. Eu nunca vi uma coisa tão cruel como essa, somos privados até do último adeus”, enviou o marido para os amigos e familiares.

Por recomendação da Organização Mundial da Saúde que buscam evitar o contágio, as vítimas de Covid-19 são cremadas ou enterradas em caixões lacrados. Velórios devem ser em locais abertos com presença de no máximo dez pessoas. Dentre elas, não deve haver pessoas no grupo de risco.

Mesmo em casos de morte não relacionadas ao novo coronavírus, as despedidas devem ser controladas para evitar aglomerações. Em Blumenau, as funerárias já descreveram o impacto das recomendações nos funerais.

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