Conheça as barreiras de pessoas com deficiência para irem ao cinema
Colunista entrevista professora que, com baixa visão, aponta os diversos desafios de ir ao cinema para pessoas com deficiência
Sobre a importância da arte em nossas vidas, ainda mais necessária em tempos de isolamento social, já sabemos. Usufruir da arte e da cultura é um direito de todos os cidadãos.
Entretanto, a cidadania cultural, teoricamente inserida em um horizonte democrático, ainda não alcança todas as pessoas, pois há barreiras que impedem, ou dificultam, o pleno acesso às produções artísticas por parte de quem precisa de uma acessibilidade mais inclusiva.
Pensando nisso, fiz algumas perguntas para a Fernanda Shcolnik, que tem baixa visão, ressaltando a urgência em conhecer, aprender e debater mais sobre cinema e acessibilidade.
Bastante atuante, Fernanda é professora do Colégio de Aplicação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (CAP UERJ), Diretora da Associação dos Deficientes Visuais do Estado do Rio de Janeiro (ADVERJ), Conselheira Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Rio de Janeiro (COMDEF RIO) e integrante do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência, que organiza e cria pautas políticas voltadas para as demandas das mulheres com deficiência.
Das Kino: Quais as grandes dificuldades que alguém com deficiência visual encontra nas salas de cinemas e nas plataformas de streaming?
Fernanda: As dificuldades começam na própria acessibilidade da sala de cinema em si. Algumas pessoas que têm baixa visão relatam dificuldades voltadas à visão noturna. É importante, então, pensar na luminosidade das salas quando as luzes estão acessas, que precisam ser muito bem iluminadas. Uma luz enfraquecida dificulta muito.
Claro que as sinalizações no chão são importantes, mas também a luminosidade no local. A luz acessa é sinal de acessibilidade. Para quem usa bengala e tem baixa visão, é necessário o piso podotátil (aquele que tem uma superfície rugosa e que pode ser sentida pelos pés), para ajudar na orientação e mobilidade com autonomia.
Quem utiliza andador, cadeira de rodas e tem cão guia (que não pode ser barrado nos espaços), necessita encontrar os locais adaptados, não apenas os cinemas, mas todos os espaços culturais. Sobre os filmes, percebo que o tamanho da fonte das legendas diminuiu muito de uns anos para cá. Nos anos 1990, por exemplo, as salas de cinema e os filmes para locação possuíam fonte maior, e era muito melhor. Hoje, o tamanho da fonte da legenda diminuiu.
Além disso, a audiodescrição nos filmes, as sessões dubladas (para todas as pessoas sem o domínio da língua estrangeira) e também a janela em Libras são fundamentais para salas de cinema acessíveis. As plataformas de streaming, como a Netflix, disponibilizam muito conteúdo sem audiodescrição, legendagem, legendagem descritiva (Closed Caption) e interpretação em Libras, dificultando muito com que a pessoa com deficiência assista. As televisões abertas e a cabo também precisam compreender a importância de tornar acessível seus conteúdos.
Das Kino: Em termos de representatividade, você conhece obras cinematográficas que apresentam personagens com deficiência? Se sim, como se dá a representação destes personagens? De forma estereotipada? Reforça preconceito? Apresenta avanços?
Fernanda: Existe uma sub-representação, porque não encontramos muitos personagens com deficiência nos filmes. Em relação a deficiência visual, um bom exemplo de filme é o brasileiro Hoje eu quero voltar sozinho (2014), cuja temática refere-se a um estudante cego do ensino médio lutando pela sua independência.
Eu gostei da forma com que o personagem Leonardo é retratado, apresentando a realidade da forma mais natural possível, e não como alguém diferente. Há cenas da melhor amiga Giovanna o guiando, há cenas do Leonardo utilizando a bengala (a realidade da maioria das pessoas).
Além disso, o filme mostrou esse protagonista como uma pessoa comum, não como um coitado ou um super herói, devido a sua deficiência. É basicamente sobre um garoto que vivencia as mesmas questões e dilemas da adolescência, aprendendo sobre relacionamentos, frequentando uma escola regular.
Outro exemplo que posso citar é o documentário Crip Camp: Revolução pela Inclusão (2020), que está dublado e com audiodescrição na Netflix. Fala sobre o movimento de luta de pessoas com deficiência nos EUA, nos anos 1960. Há também a série Atypical (2017), cujo protagonista é um adolescente que apresenta deficiência intelectual, o autismo (a forma correta de dizer é transtorno do espectro autista, para englobar diferentes condições, o autismo é só uma destas).
Ali também vemos os mesmos anseios por buscar independência dos pais, em ir para a faculdade e namorar, representando o personagem com naturalidade. Isso é muito importante porque a pessoa é vista como alguém que não tem sexualidade, que tem interdições para tudo.
Eu acho muito positivo o fato de mostrar o garoto Sam indo para a faculdade, sem impedimentos, demonstrando as demandas dele. A série mostra, inclusive, que na faculdade em que o Sam estuda há um núcleo de atendimento para pessoas com deficiência, há reuniões de pais com filhos com espectro autista, algo extremamente importante de reforçar: o atendimento, as cotas para pessoas com deficiência, é importante o apoio e se sentir acolhido.
A série mostra o Sam sendo o melhor amigo de um rapaz que não tem deficiência, e as diversas situações não o colocam em inferioridade. Claro que vemos as situações de preconceito que ele sofre, mas há igualdade na relação de amizade. É uma série verossímil, que reforça a não-descriminação.
Outra série é a recente Crisálida (2020) (Sobre a série Crisálida, leia a coluna Das Kino), e o filme Margarita com o canudinho (2014), delicado em retratar a descoberta sexual da personagem com deficiência.
Das Kino: Poderia falar um pouco sobre a recente alteração do art. 125 da Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência), aprovada pelo Senado por unanimidade em 28/05/2020, ampliando para mais 12 meses o prazo de adequação das salas de cinema às normas de acessibilidade e sobre como isso prejudica muito os espectadores cegos, com baixa visão, surdos e ensurdecidos?
Fernanda: Essa postergação do prazo para que as salas de cinema se adaptem às condições necessárias para serem acessíveis para todo mundo mostra, claramente, que a justiça não é justa, e que pensando no interesse de grupos econômicos, os donos dos cinemas, vemos que o problema é a total falta de vontade destas pessoas, em que prevalece o lucro em detrimento da vida e direito das pessoas.
Não vai existir democracia enquanto nem todos forem contemplados, isso sem falar do recorte de classe que podemos fazer, com o preço caro dos ingressos, uma vez que pessoas com deficiência são marginalizadas. Segundo dados do IBGE de 2010, mais de 6,5 milhões de pessoas possuem alguma deficiência visual no Brasil.
Isso significa que 6,5 milhões de pessoas não podem ir ao cinema. Geralmente, fazemos outras atividades ou tentamos assistir algo em casa, que, como vimos, também nos falta em opção. Falta democracia e justiça, e queremos ter o direito de ir ao cinema.
É lamentável que tenham estendido o prazo de adequação. Há muito descaso do Governo Federal com as pessoas com deficiência, há tempos recebemos ataques. Agora durante a pandemia, por exemplo, o governo ignora as necessidades as pessoas com deficiência em vários aspectos.
*Sobre o assunto, a Organização Nacional de Cegos do Brasil (ONCB) lançou uma nota no dia 3 de junho de 2020, manifestando lamento e grande indignação por conta de tantas intenções contrárias à inclusão.