Das Kino - Um olhar crítico sobre o cinema

Jéssica Frazão é doutoranda na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e escreve sobre cinema, artes e produção audiovisual.

“Doutor Sono falha em entregar um terror à altura de O Iluminado”

Colunista avalia continuação de clássico filme dos anos 1980, baseado em livro de Stephen King

Doutor Sono: a continuação de O Iluminado

Mike Flanagan estava em uma situação complicada quando decidiu dirigir Doutor Sono (Doctor Sleep, 2019). De um lado, houve a responsabilidade de adaptar para o cinema uma obra baseada no livro de Stephen King, autor prolífico que possui uma legião de fãs.

Do outro, fez-se a continuação direta de O Iluminado (The Shining, 1980), simplesmente um dos filmes mais conhecidos e celebrados de Stanley Kubrick, um perfeccionista obsessivo que, frequentemente, pedia aos seus atores para refazerem um take centenas de vezes, até ficar satisfeito.

Na época de O Iluminado, Stephen King deixou claro seu descontentamento com Kubrick, pela forma destituída com que ele lidou com o roteiro, retirando elementos que eram fundamentais no livro.

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Durante vários anos, o escritor condenou e repudiou a obra kubrickiana. Optou por fazer sua própria adaptação, anos depois, trabalhando no roteiro da minissérie O Iluminado, dirigida por Mick Garris para a rede de televisão estadunidense ABC.

Comparações entre a minissérie e o filme são inevitáveis, porque saímos do universo literário e falamos de experiência audiovisual. Para além da fidedignidade narrativa tencionada por King, tem peso e deve ser considerado no audiovisual a atuação, a fotografia, a luz, o figurino, a maquiagem, os efeitos especiais, a trilha sonora, dentre outros elementos.

Assim sendo, o filme de Kubrick, sucesso de bilheteria na época de seu lançamento, é, não discriminadamente, considerado um dos melhores filmes de terror de todos os tempos.
O diretor mudou drasticamente o final do livro, que deveria ser com a explosão do hotel Overlook, preferindo finalizar com Jack congelando até a morte. Na minissérie, o final do livro foi mantido, como queria King.

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Gravado 40 anos depois de O Iluminado, Doutor Sono é uma adaptação direta ao livro de King (de mesmo nome), ainda que alguns detalhes assegurem uma espécie de prestação de contas ao filme de 1980, como a relação pulsante do protagonista com um Overlook ainda erguido.

O filme se altera entre acompanhar a vida do menino Danny, agora adulto, ainda atormentado pelos fantasmas de sua infância, uma garotinha com poderes telepáticos chamada Abra, iluminada como Danny (e ainda mais sensitiva), e um grupo de criminosos sobrenaturais, sugadores das almas de pessoas iluminadas, uma vez que o brilho (shining) lhes prolonga a vida.

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Com duração de duas horas e meia, percebemos uma demora em conectar os três pilares da história, tornando as subnarrativas de algum modo superficiais. Das três, a mais desenvolvida é a de Danny, alcoólatra como seu pai, Jack, sugestionando que alguns traumas não podem ser superados.

Entender o “brilho” (shining), ou dom de ser iluminado, é aqui o ponto principal a ser trabalhado. Espacialmente, o filme se passa no interior dos Estados Unidos, um traço bastante presente nas obras de Stephen King. Nesse universo ampliado, percebemos que são vários os seres humanos iluminados, e que com maior ou menor intensidade, utilizam seus poderes para o bem ou para o mal.

É nesse embate que Abra e Danny se juntam contra a turma de Rose, a líder do grupo de criminosos, para que a morte de outras pessoas iluminadas cesse. Somos direcionados, próximo ao final do filme, de volta para o hotel Overlook.

Aqui temos uma nítida tentativa de agradar aos admiradores de Kubrick, porque além da aguardada representação do hotel (uma entidade, um personagem per se), um ser vivo que foi despertando do seu sono profundo após muitas décadas, todos os fantasmas e visões que atormentavam Danny também despertam, como as gêmeas macabras, a mulher nua na banheira, o garçom, e muitos outros personagens, uma recriação do lugar e das pessoas que funciona bem.

Em síntese, Doutor Sono certamente tem bons momentos, mas falha em entregar um terror à altura de O Iluminado. Algumas ações dos “sugadores de alma” me pareceram, por exemplo, ao contrário do que se espera, infantis.

Pela duração e maneira de entregar esta mescla de novos e antigos elementos, deve agradar mais aos fãs de King do que de Kubrick, mas, independentemente disto, vale a pena assisti-lo, quer seja pelo saudosismo que sentimos, quer seja pelo fechamento narrativo e explicações importantes sobre o brilho (ou shining).

Doutor Sono está em cartaz nos três cinemas de Blumenau: GNC Cinemas, Arcoplex e Cinépolis.

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