Circulou amplamente na internet nas últimas semanas um episódio de teor racista e preconceituoso ocorrido em uma live organizada pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS). O episódio envolvia Luciana Tomasi, atriz, produtora e esposa de Carlos Gerbase, diretor do filme gaúcho Inverno (1983), longa que estava sendo debatido durante a transmissão
Em um comentário extremamente infeliz, Luciana, além de atestar seu lugar de privilégio, defendeu uma separação clara entre um cinema feito por descendentes europeus, destacando tanto sua “linhagem francesa” quanto o sobrenome de origem europeia da maioria dos participantes, e um cinema do restante, que deve se preocupar em contar sua própria história, segundo ela: a da senzala.
“Tu tá falando com um Schünemann, com uma Tomasi, uma Adami, um Gerbase. Não adianta a gente tentar fazer um filme da senzala, entende? Não seria o nosso melhor. Então, cada um tem que mostrar o que curtia e como é que veio. Então, eu acho que eu tava totalmente ambientada. Inclusive, eu tenho sangue francês também, não adianta, então cada um faz [filme] da sua história. É um filme roots, total”.
Por sorte, também estava presente no debate a roteirista Mariani Ferreira, única pessoa negra do grupo, que respondeu Tomasi à altura:
“Acho que tem duas coisas no cinema gaúcho que sempre me impressionam: essa coisa de mostrar uma Porto Alegre que é apenas um recorte da Porto Alegre real, não é a Porto Alegre total. Ao mesmo tempo em que essa Porto Alegre é a Porto Alegre dos Tomasi, dos Gerbasi, dos Adami, Porto Alegre também é a Porto Alegre dos Oliveira, Silveira. Porto Alegre é onde nasceu o 20 de novembro [Dia da Consciência Negra]. É bem triste dizer que não se faz ‘filmes de senzala’ em Porto Alegre.”
Ao que parece, para Tomasi, pessoas negras devem fazer apenas “filmes de senzala”, e não outras temáticas, que tornem as narrativas plurais, para além da ideia de senzala e escravidão. A produtora mostra um total desconhecimento do trabalho de cineastas negros em nosso país.
É fundamental descolonizar o nosso olhar, acostumado que é às narrativas brancas e eurocêntricas, e abrir espaço para a diversidade das experiências negras no Brasil. As produções audiovisuais hegemônicas continuam reforçando violência simbólica, uma condição que reproduz, por exemplo, os estereótipos e os estigmas sociais.
A ampliação das narrativas começa, desse modo, quando damos espaço, quando nos interessamos, quando procuramos aprender com filmes de direção negra. Alguns nomes: Sabrina Fidalgo, Adélia Sampaio, Grace Passô, Carmen Luz, Lilian Solá Santiago, Jeferson De, André Novais de Oliveira, Gabriel Martins, Camila de Moraes, Viviane Ferreira, Yasmin Thayná, Glenda Nicácio, Thiago Almazy, Lázaro Ramos, Jéssica Queiroz, Juliana Vicente. Há vários outros, muitas vezes invisibilizados.
Reconhecer atitudes racistas é um começo, como fez, posteriormente, a própria Luciana Tomasi. Mas, como bem disse Angela Davis, “Numa sociedade racista, não basta não ser racista é preciso ser antirracista”. Então, precisamos expor, tornar público, cada episódio, cada fala, cada atitude racista, no audiovisual ou fora dele, como estratégia de enfrentamento de um racismo estrutural.
Por conta disso, é importante falar também de Carlos Gerbase, diretor do filme Inverno (1983) e professor de cinema na PUCRS. Além de fazer comentários racistas na transmissão tanto quanto sua mulher, também tem sido responsabilizado por uma série de situações desconfortáveis e dolorosas para vários ex-alunos. Aqui há um depoimento de Gautier Lee, por exemplo, contando justamente alguns destes episódios de racismo vividos na universidade.
Vivemos em um País racista, sendo o Sul apenas uma parte dele. Estes problemas que existem no audiovisual brasileiro estão, na verdade, entranhados em nosso tecido social, oriundos do trauma da escravidão. Situações desfavoráveis e desiguais para as populações negras são frequentes por aqui.
No último domingo, 12, por exemplo, enquanto preparava esta coluna, o programa Fantástico, da TV Globo, exibiu uma cena de violência policial, em que, durante abordagem em um bar da Zona Sul de São Paulo, um policial pisa no pescoço de uma mulher negra caída no chão, em um caso muito semelhante ao de George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos, que impulsionou os últimos protestos Black lives matter (em pt.: Vidas Negras Importam) em todo o mundo.
Em um contexto assim, quando a ideia de sobrenome aparece quase sempre está associada à noção de branquitude e situações de poder, o nome de uma ou de outra família é invocado para denotar um lugar de fala privilegiado, algo muito frequente no Sul do País, sobretudo em Blumenau.
É possível ver mesmo a arte imitando a vida. Talvez a melhor síntese sobre a questão na história recente de nosso audiovisual tenha sido a reflexão proposta por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles no filme Bacurau (2019), em que os sulistas enfatizam para os estrangeiros que eles são do Sul do Brasil, “uma região muito rica, com colônias alemãs e italianas”, e que, portanto, “somos mais como vocês”. Para os estrangeiros, entretanto, os brasileiros sulistas que se vangloriavam estavam mais para “latinos” ou “mexicanos brancos” (Veja a cena abaixo).