Estatuto da Criança e do Adolescente completa 30 anos: entenda como lei impacta toda sociedade
Direitos básicos como saúde pública, alimentação e educação tem relação com o ECA
Nesta segunda-feira, 13 de julho, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 30 anos. A lei foi publicada a partir do entendimento de que as populações mais jovens também possuem direitos e deveres específicos e prioritários.
Para entender porque as crianças e adolescentes se tornaram prioridade absoluta a partir de 1990, é preciso entender a legislação que estava em vigor até então. O Código de Menores, que surgiu em 1927, é hoje considerado por especialistas como um problema na socialização. Seu foco era punir os “menores”, ao invés de buscar soluções.
Para Wanda Helena Mendes Muniz Falcão, professora de Direito da Infância, Juventude e do Idoso da Furb e integrante do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente da UFSC, a mudança de raciocínio quanto à criança e o adolescente no Brasil começou com a Constituição Federal, em 1988.
No art. 227, o documento coloca como “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Para Muniz Falcão, isso representa um ponto de virada para que as crianças e adolescentes se tornem sujeitos de direito. “Eles não são mais um objeto na mão dos pais, da sociedade e do Estado. Eles são reconhecidos. Desde que fomos invadidos por Portugal, isso não havia sido feito. A história da infância e da adolescência no Brasil é marcada por violência e estigmatização”, explica.
A colocação da professora reflete a opinião da juíza titular da Vara da Infância e Juventude da comarca de Blumenau. “A importância da legislação específica para as crianças e os adolescentes significa o reconhecimento de que o grupo humano mais vulnerável pela idade e imaturidade é sujeito de direitos fundamentais prioritários e de cidadania, os quais devem ser respeitados por todos”, afirma Simone Faria Locks.
Ambas também defendem que a concretude dos direitos e garantias dos jovens depende de todos, não apenas do Estado ou dos pais. “Por mais que você não tenha convivência com crianças no seu dia a dia, você é responsável por elas”, afirma Muniz Falcão.
Entretanto, os jovens não são os únicos beneficiados pelo Estatuto. Afinal, a garantia de direitos básicos a eles representa, consequentemente, uma extensão dessas garantias a toda a coletividade.
“Direitos como vacina, escola pública, garantia de alimentação e a criação do conselho tutelar só existem por conta do ECA. Nós, jovens, não temos noção do que nossos pais viveram antes da Constituição. Para uma legislação, 30 anos é muito pouco, mas já vemos transformações em toda a sociedade”, comenta a professora Wanda Muniz Falcão.
Não são apenas as crianças e adolescentes que são protegidas pelo ECA. O Estatuto resguarda também as mães e pais, protagonistas na vida destes jovens. Os direitos começam desde o momento em que o bebê está na barriga da progenitora.
“O ECA não é o estatuto da impunidade ou uma cartilha de bons costumes. Não ensina a ser pai e mãe, não ensina a ser bom filho, não passa mão na cabeça de ninguém. Ele regula todo o universo de direitos da criança e do adolescente. A relação com a família, com a escola, com o serviço de saúde, com o Estado, com o judiciário e com o Ministério Público. Não é uma lei para a criança, e sim para a sociedade”, conclui a especialista.
Convenção sobre os Direitos da Criança
Um dos reflexos do ECA, que também influenciou na elaboração do Estatuto brasileiro, é a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC) pelas Nações Unidas. Ambos foram redigidos e discutidos na mesma época, sendo o CDC o tratado mais amplamente aceito no mundo.
No ano passado, a Unicef publicou um relatório apontando os avanços desde a instituição da Convenção assim como os desafios que ainda precisam ser superados. Como aponta a representante brasileira do órgão, Florence Bauer, dados como pobreza e mortalidade infantil apresentaram uma melhora significativa.
Entre 1990 e 2017, a taxa de mortalidade infantil (até 1 ano) caiu de 47,1 para 13,4 mortes para cada mil nascidos vivos. A mortalidade na infância (até 5 anos) seguiu a mesma tendência, passando de 53,7 óbitos por mil nascidos vivos, em 1990, para 15,6 em 2017.
Alguns números do passado assustam. Há 30 anos, 34% das crianças brasileiras não eram registradas no ano de seu nascimento. Já em 2013, o número chegou a 95%, de acordo com a Pnad. No Sul e Sudeste, a taxa alcançou 98%.
Ao mesmo tempo, novos obstáculos, como a crise climática e o aumento de transtornos mentais entre jovens, perpetuam desigualdades. Bauer menciona a dificuldade do acesso à educação e saúde por parte de algumas crianças, além da exposição à violência e exploração.
Entenda como a publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Convenção sobre os Direitos da Criança impactaram na vida dos jovens e de todos que os cercam.
Saúde
A garantia de saúde pregada pelo ECA começa na barriga da mãe. Mesmo antes de nascer, o bebê já tem reconhecida sua proteção integral. Por este motivo, é dever do Estado estabelecer políticas públicas desde a gestação.
“Não é a toa que as unidades de saúde possuem especialistas como pediatras e obstetras. O foco está na grávida e na criança lá dentro, que já é sujeito de direito. Uma vida que importa para o Estado”, justifica Wanda Muniz Falcão.
Partes essenciais da saúde pública atual, como vacinação gratuita e os testes do pezinho e da orelhinha, também vieram após a publicação do Estatuto. Uma melhora na saúde populacional, também beneficia o envelhecimento da população.
“Quando você cuida de uma criança desde a gravidez, acompanha o quadro vacinal, oferece saúde gratuita… Isso garante adultos menos doentes. Então todos somos beneficiados pelo ECA”, defende a professora.
Educação e desenvolvimento
Um dos avanços mais impactantes na educação infantil é a mudança nas taxas de analfabetismo, com o percentual caindo de 12,5%, em 1990, para 1,4%, em 2013 – uma redução de 88,8%. Entre os adolescentes negros a evolução foi ainda maior, de aproximadamente 91%.
O número de crianças fora da escola também passou de 19,6% para 4,7% no mesmo período. Porém, isso signfica que, em 2017, quase 2 milhões de meninos e meninas ainda estavam distantes da sala de aula.
Os mais afetados são os pobres, negros, indígenas e quilombolas. De acordo com o relatório da Unicef, muitos deixam a escola para trabalhar e contribuir com a renda familiar. Jovens com deficiência também acabam não tendo acesso à educação. Pontos que o ECA ainda precisa ser melhor aplicado.
“É só você comparar a quantidade de idosos que nunca foi à escola com os jovens adultos. Na época deles, não existia uma política de estado que obrigasse o município a dar educação pras crianças. O acesso ao ensino médio e superior também aumentou. O investimento desde a infância é o que possibilita cidadãos conscientes”, complementa Muniz Falcão.
O tratamento das crianças no ambiente escolar também mudou, já que os professores passaram a ser responsabilizados por qualquer tratamento “cruel ou degradante”, tanto na escola quanto em casa, como coloca a professora.
A especialista também cita outros direitos que deveriam ser garantidos às crianças, como brincar, praticar esportes e desenvolver sua criatividade. Atividades que auxiliam no desenvolvimento das capacidades cognitivas.
“Se você quer que as empresas funcionem melhor, você tem que investir na primeira infância. Crianças criativas se tornam adultos melhores para o mercado de trabalho. Não é à toa que hoje temos um boom de criatividade e arte”, comenta.
Proteção contra violência
Para a juíza Simone Locks, um dos avanços mais notáveis é no amparo das crianças e adolescentes. Desde a proteção contra a agressão vinda dos pais até a escuta protegida, quando o jovem é vítima ou testemunha de violência.
Ela também cita o Marco Legal da Primeira Infância, focado nas crianças até seis anos, e a garantia da manutenção do convívio familiar e comunitário. Colocando o acolhimento institucional como exceção e possibilitando adoção segura, apadrinhamento afetivo e acolhimento familiar.
Para a professora Wanda Muniz Falcão, mais cidades de Santa Catarina deveriam ter Varas da Infância, como Blumenau. A equipe interprofissional, que além dos magistrados inclui assistentes sociais e psicólogos, são responsáveis por todos os processos que tocam os interesses da criança e adolescente.
Porém, ela credita ao ECA a criação dos conselhos tutelares, presentes em todos os municípios brasileiros, e conselhos de direitos. A delegacia especializada também é vital para que crianças que são vítimas sejam bem atendidas.
“O ECA tem a listagem de crimes próprios contra a criança. No Brasil, o caos é a violência sexual. A violência que não é praticada fora de casa e, por isso, é silenciada”, aponta a pesquisadora..
Os dados do Disque 100 confirmam isso. Mais de 60% das denúncias de violação de direitos dos jovens ocorrem em suas casas ou na escola. Mais de 72% envolvem negligência, seguidos por violência psicológica (48,8%), física (40,6%) e sexual (22,4%).
Criminalidade na juventude
Um ponto reforçado tanto pela professora quanto pela juíza é o uso do termo “menores”, usado especialmente para se referir aos infratores. Elas explicam que o termo é pejorativo, pois remete ao Código de Menores.
“As pessoas acham que o ECA protege ‘menores infratores’. O equívoco começa no fato de que a palavra ‘menores’ não é mais utilizada, dado o histórico de sofrimento e exploração que ela carrega”, explica a dra. Simone Faria Locks.
A juíza explica que as transformações físicas, mentais e emocionais pelos quais os jovens passam durante seu desenvolvimento, impossibilitam que eles sejam colocados no mesmo patamar do que adultos – e isso inclui a relação deles com a lei.
“Se não cuidarmos das crianças e dos adolescentes, impactaremos o futuro do país. Principalmente nas situações ligadas à primeira infância, de zero a seis anos. Tanto pelo seu índice de criminalidade, como pelo seu potencial de desenvolvimento humano a partir do desempenho escolar, conforme as pesquisas do Prêmio Nobel de Economia James Heckman já comprovaram”, argumenta.
Segundo ela, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) oferece meios mais humanizados. A justiça para crianças e adolescentes deve ser restaurativa, priorizando a educação e o apoio. Além de encontrar formas de ajudar o jovem a reconhecer sua responsabilidade e planejar seu futuro.
“Adolescente não comete crime, só ato infracional. Adolescente não cumpre pena, só medida socioeducativa. Não é um processo penal”, complementa a pesquisadora Wanda Muniz Falcão.