Intolerância religiosa: moradores de Blumenau relatam vivências dentro de religiões de matriz africana
Racismo estrutural e ignorância sobre o assunto são base do problema
Dentre as mais de 500 igrejas que ocupam a cidade de Blumenau, a presença de terreiros de religiões de matriz africana acaba sendo não apenas ofuscada. Em meio à cultura germânica, eles também se tornam alvos constantes de ataques e preconceito.
Apesar de a intolerância religiosa estar intrinsecamente atrelada ao racismo, o fato de a maioria dos frequentadores destes espaços na região serem brancos não impede que eles sejam vítimas da discriminação.
Frequentadora da umbanda há dois anos, a blumenauense Thaline decidiu usar o conhecimento que está recebendo como iniciante na casa que frequenta para buscar desmitificar preconceitos envolvendo a religião.
“Eu era ateia, mas acabei buscando o espiritismo após viver experiências que não encontrava explicação lógica. Só queria ajuda, mas me sentia ainda mais esquizofrênica. Até que durante uma tentativa de suicídio fui visitada pelo que depois entendi ser minha pomba gira. De início tive muito medo de frequentar terreiros, mas hoje aprendi a me amar e que minha vida vale a pena. Nem todo início é tão trágico, mas a maioria das pessoas entra na religião pela dor”, comenta.
Sabendo dos receios que ela mesmo tinha, Thaline usa o TikTok e o Instagram para produzir conteúdo informativo e descontraído sobre as vivências dela e as dúvidas que as pessoas trazem sobre a religião.
Intolerância é diária
O advogado Marco Antonio André foi vítima de um ataque conhecido em Blumenau, quando cartazes nazistas foram espalhados pela cidade. “Negro, comunista, antifa, macumbeiro. Estamos de olho em você”. Não por acaso, a parede da casa dele foi um dos locais nos quais um deles foi afixado.
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“Ainda me sinto lesado, porque o caso não foi solucionado. Mas o que mais me entristece é que ele não foi isolado. Se fosse abrir processo contra todos os casos de racismo estrutural que vivo, não sairia de dentro da delegacia”, destaca.
Natural de São Paulo, Marco teve o primeiro contato com religiões de matriz africana enquanto estudava na Universidade Regional de Blumenau (Furb). Após conhecer alguns terreiros de umbanda da cidade, ele se encontrou no candomblé. Batizado na Igreja Católica, ele até então não havia experienciado tal conexão.
“Foi na universidade que descobri essa discussão ancestral, relacionada à minha negritude. Me reconheci como homem preto de verdade em Blumenau, após sofrer o que hoje entendemos como racismo estrutural”, explica.
“A Justiça, em si, é racista”
Por frequentar muitos ambientes conservadores como advogado, Marco possui diversos relatos de intolerância envolvendo sua religião. Recentemente, ele ouviu de um agente de segurança pública que não poderia pisar no Fórum por estar vestindo branco.
“Ele disse que enquanto estivesse ali, pai de santo não pisaria ali dentro. Mal sabe ele que eu fiquei lisonjeado por ser chamado de pai de santo, mesmo sem ser. Mas ele quis me atacar. Já fui barrado no Fórum inúmeras vezes, precisando apresentar a carteirinha da OAB para entrar”, conta.
Como advogado criminalista, Marco luta contra os casos de racismo na região. Muitos envolvendo religiões de matriz africana. Entretanto, relata que frequentemente eles são “rebaixados” para o crime de injúria racial, considerado menos grave. Para ele, isso é um reflexo da herança escravocrata brasileira.
“Quem faz as leis no Brasil são os herdeiros das fazendas que escravizavam estes negros e acabam trabalhando ao favor do poder branco. Os crimes estão aumentando, porque os racistas se sentem autorizados, mas vítimas estão buscando seus direitos cada vez mais. O mais difícil do meu trabalho é explicar para uma vítima que sofreu um crime grave que a Justiça não penalizou o criminoso”, reflete.
Como exemplo local recente, Marco citou o caso da servidora da Câmara Municipal de Gaspar, que denunciou ter sido vítima de racismo por parte de uma colega. Para ele, nem sempre a Justiça reflete sobre como situações como essas afetam as vítimas psicologicamente.
“Candomblé é um estilo de vida”
Marco explica que no continente africano o candomblé é entendido como um estilo de vida, assim como o budismo é encarado na Índia. É por isso que ele entende a umbanda como sua religião e o candomblé como seu modo de viver. Ele relata também como é ser um dos únicos negros no terreiro que frequenta.
“Tenho um enorme respeito por todos pais de santo da região que lutam contra o racismo, mesmo sendo brancos. É um fenômeno brasileiro, muitas pessoas pretas estão indo para igrejas neopentecostais. O que não é um problema, desde que ele entenda a origem dele, a importância da religião e o significado do candomblé como movimento”, ressalta.
Ainda assim, Marco olha com esperança para o futuro e acredita que, apesar de vivermos um período de muita intolerância, a educação é a saída para que ela seja derrotada.
“Estamos ocupando mais espaços, mas é uma luta diária e constante. Temos olhares de canto de olho, mas também de curiosidade. Ou até de cumplicidade. Já ouvi um ‘axé’ de um agente penitenciário que me pegou de surpresa”, comenta.
Pai de santo “alemão”
Ciente da sua descendência, o pai de santo Ju cresceu dentro da umbanda e com o tempo passou a ser babalorixá também no candomblé. Para ele, as duas religiões se complementam, mesmo tendo suas diferenças.
“Os fundamentos são totalmente diferentes. Você não pode tocar as duas no mesmo dia. A umbanda trabalha com guias que já viveram na Terra e morreram. Já o candomblé vem da energia da natureza, de orixás que nunca tiveram corpo presente, mas seguem vivos até hoje e manifestam essa energia na gente”, explica.
O terreiro dele fica em Gaspar Alto, próximo ao limite com o bairro Glória, em Blumenau. A localidade foi escolhida por dois motivos: estar mais próximo da natureza, mas também se distanciar de vizinhos que pudessem reclamar da atividade ou atacar o espaço.
A maioria das pessoas que procuram o pai de santo para encomendar algum trabalho, segundo ele, são de fora da religião. Muitos procuram o espaço “escondidos”. Para ele, é responsabilidade do babalorixá guiar essas pessoas para entender que prejudicar os outros não é uma opção.
“No fim do ano as pessoas vestem branco e pulam sete ondas, sem saber que são homenagens à Iemanjá. Mas quando fazemos nossa oferenda somos criticados. Ou então veem nosso orixá Exú como o diabo, sendo que essa é uma criação cristã. Nós não temos diabo, apenas acreditamos em energias positivas e negativas que devem ser equilibradas”, exemplifica.
Entretanto, apesar de lidar com a intolerância religiosa diariamente, Ju não sofre o mesmo racismo que Marco. Quando anda nas ruas de branco, por exemplo, ele não é chamado de “macumbeiro”. Pessoas, na verdade, já questionaram se ele era médico.
“Quando eu expliquei que era babalorixá de candomblé, a pessoa nem sabia o que era isso. O triste é que a umbanda é a única religião totalmente brasileira. É a ‘nossa’ religião. As pessoas não conhecem o que é nosso”, reflete.