Semanas após conflito na barragem, comunidade indígena de José Boiteux segue sem lar e com médica voluntária
Famílias ainda estão em abrigos; médico titular está de férias
Quase um mês após as cheias que afetaram todas as aldeias em José Boiteux e o conflito na barragem localizada na cidade, a comunidade Laklãnõ Xokleng ainda luta para retomar o espaço tomado pela água. As famílias seguem acampadas e com dificuldade de acessar água potável.
Apesar de a comporta estar com ocupação de pouco mais de 36%, muitas das fontes de água seguem submersas ou cobertas pela lama. Por conta disso, as escolas ainda não voltaram a funcionar. Já a saúde está sendo coberta por apenas um posto e sem médicos.
Na semana anterior, o Ministério Público Federal esteve novamente em José Boiteux para ouvir as entidades envolvidas na representação da comunidade indígena, as lideranças da região e a Defesa Civil do estado.
Porém, a Justiça Federal segue aguardando um laudo atualizado por parte do governo estadual comprovando a viabilidade do uso das comportas da Barragem Norte. O documento anexado no pedido anterior era de 2021.
Duas comportas da Barragem Norte foram fechadas no dia 8 de outubro, após a estrutura ficar quase uma década sem manutenção. No dia 13, a água verteu pela primeira vez na história. Após o vertimento cessar, uma comporta foi reaberta no dia 15.
A segunda comporta ficou travada pela falta de manutenção do sistema hidráulico de controle. A Defesa Civil de Santa Catarina decidiu então realizar a operação em outro momento. Com isso, o esvaziamento pode levar quase um mês.
Um Estudo do Componente Indígena (ECI), realizado pela empresa Terra Ambiental – Consultoria em Meio Ambiente, conta que o processo de construção da Barragem Norte iniciou em 1976, sendo finalizado na década de 90, e “desconsiderou a presença dos povos indígenas ali presentes e a falta de um estudo de impacto ambiental anterior às obras repercute até hoje na comunidade”.
Uma pesquisa sobre a Barragem Norte e sua influência nas comunidades indígenas, realizada em 2017 por Marcia Fusinato Barbosa Athayde e Pedro Martins, explica que o maciço da barragem foi erguido próximo aos limites da terra indígena Xokleng/Laklãnõ.
“Seu lago de contenção atinge as terras de várzea que antes da obra eram habitadas pelos povos Xokleng e Kaingang, pelo grupo Cafuzo inserido na área no final da década de 1940 e pelo grupo Mbya-Guarani lá instalado no início dos anos de 1950. Também atinge terras agricultáveis situadas às margens do Rio Dollmann, as quais eram utilizadas por descendentes de colonos instalados no lugar desde meados da segunda década do século XX”, explicam os pesquisadores.
Conforme a pesquisa, a implantação da Barragem Norte resultou no deslocamento dessas comunidades. “Boa parte dos indígenas migraram para fora da área e os que permaneceram tiveram suas moradias deslocadas para as encostas ao longo do rio. O grupo Cafuzo foi relocalizado em outra área do município e os moradores de Barra do Rio Dollmann dispersaram-se, alguns localizaram-se nos limites da área de segurança da barragem, mas a maior parte migrou para outras cidades”, contam.
O Estudo do Componente Indígena (ECI) informa que a comunidade indígena foi atingida por uma primeira grande enchente causada pela Barragem Norte em 1978. “A enchente foi responsável por destruir boa parte da estrutura, cultivos e criações existentes à margem do Rio Hercílio.
Segundo os indígenas, no dia após a inundação iniciou-se um processo de improvisação de moradias, com lonas, madeira e palha. Em 1983, houve outra grande enchente que destruiu o que havia restante das casas, estruturas, plantações e criações indígenas nas margens do rio”, conta o estudo.
Já que o reservatório atingiu terras habitadas pelos indígenas, as famílias cobram a reparação de danos.
As cheias ocorreram em um período de vulnerabilidade da saúde da população, já que a médica responsável estava de férias. Por conta disso, a médica Livia Martins Santos, que atualmente mora em Curitiba, recebeu uma mensagem da comunidade pedindo ajuda.
“Meu companheiro produziu um documentário sobre a comunidade no ano passado e ficamos próximos. Já estava em busca da vaga de médica em José Boiteux, mas vendo a situação que eles estavam fui voluntariamente atender. Admiro muito a história de luta e resiliência deles”, conta.
Ela teve o apoio de equipes de saúde que já fazem parte do atendimento à saúde indígena, mas ainda foi difícil dar conta da demanda por conta da situação de calamidade. Ela ressaltou a importância da ambulância enviada pelo governo estadual, apesar da demora na chegada, mas se preocupa com a saúde mental da comunidade a longo prazo.
“Eles estão muito chocados por conta da abordagem da Polícia Militar e abalados por terem perdido suas casas. Penso que num futuro próximo podemos ver muitos quadros de ansiedade, insônia e transtorno de estresse pós-traumático”, exemplifica.
Apesar de esperar muitas doenças gastrointestinais pela falta de água potável, Livia acredita que esse problema deve vir mais adiante. Até o momento, a maior parte dos atendimentos foi de quadros de doenças respiratórias, como alergias, resfriados e gripes.
Em meio ao conflito na barragem para o fechamento das comportas, que já havia sido acordado com a comunidade, três indígenas precisaram ser hospitalizados. A Polícia Militar usou balas de borracha após um deles supostamente tentar desarmar os policiais.
Já para a comunidade a presença policial não era necessária, já que a decisão de fechar as comportas já havia sido tomada. Porém, eles esperavam que o acordo fosse cumprido de imediato, o que não aconteceu.
“No dia 7 foi acordado que a ajuda seria entregue antes das comportas serem fechadas, mas eles só receberam todas as cestas básicas dez dias depois. Não havia resistência, então não havia necessidade dessa cena de guerra. Mais de cem policiais, cavalaria, canil, helicópteros… Dinheiro gasto à toa”, opina Elsa Bevian.
O acordo, assinado pelas lideranças indígenas e representantes do governo do estado no sábado, previa:
- desobstrução e melhoria das estradas;
- equipe de atendimento de saúde 24 horas;
- três barcos para atendimento da comunidade;
- ônibus para transporte da comunidade até a cidade;
- água potável nas aldeias;
- e cestas básicas
“Eles enviaram comida para duas das dez aldeias. Itens como leite em pó, sendo que nem tem água para usar. Na segunda muitos já estavam com diarreia e a água enviada não é suficiente. Vinte litros por família para passar a semana”, explica Georgia Fontoura, coordenadora do Núcleo de Estudos Indígenas da Furb.
Já o transporte, que era esperado em barcos com motor para agilizar o salvamento dos indígenas ilhados, vieram em forma de canoa, segundo a comunidade, o que foi considerado por eles como inviável para o transporte de muitos moradores.
Além do envolvimento do Núcleo de Estudos Indígenas da Furb, Universidade de Blumenau, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH) de Blumenau também se envolveu no caso.
“Estamos solidários e preocupados com todas as pessoas atingidas pelas cheias, não apenas aqui em Blumenau. Mas os municípios oferecem assistência para as pessoas, enquanto os indígenas não recebem esse apoio”, explicou a coordenadora do CDDH, Elsa Bevian.
Ela também enviou um ofício ao prefeito de Blumenau, Mário Hildebrandt, por uma mobilização municipal que arrecade donativos para a comunidade, já que eles estariam sofrendo com estes impactos para proteger o Médio Vale. Até o momento, não houve retorno.
Uma nova reunião foi realizada na segunda-feira, 30, para criar um comitê focado na fiscalização da aplicação dos recursos enviados pelo governo federal. A frente ampla contará com representantes do Conselho Estadual de Direitos Humanos, da Pastoral da Criança da Igreja Católica, da pastoral indígena e de demais entidades do estado.
“Os indígenas já sabem o que acontece quando fecham a barragem. Já sabem que ficarão sem casa, sem poder ir trabalhar e sem água. Por isso o estado também deveria saber e entregar o necessário antes de fechar a barragem, e não após tanta pressão. Se não fosse a mídia nem teriam cumprido as demandas”, ressalta Elsa.
Para auxiliar a comunidade indígena e moradores de Taió afetados pelas cheias, é possível doar caixas de leite, alimentos não perecíveis, roupas, água mineral, cobertores e produtos de higiene e limpeza. Confira os endereços para doação em Blumenau:
Furb
Campus 1 da universidade, nos blocos A e K
Sintraseb
rua Amazonas, 720, bairro Garcia
Sintrafite
rua Luiz de Freitas Melro, 365, Centro
Sindetranscol
rua Dr. Luiz de Freitas Melro, 365
Seeb
rua Cel. Vidal Ramos, 282
Doações por Pix também podem ser feitas ao CPF 04964724964, no nome de Micael Vaipon Weitscha, integrante do movimento Blumenau pela Vida. O valor será repassado ao presidente dos caciques, Setembrino Camlem.