Das Kino - Um olhar crítico sobre o cinema

Jéssica Frazão é doutoranda na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e escreve sobre cinema, artes e produção audiovisual.

“Morto não fala” e a qualidade dos filmes de terror nacionais

Colunista comenta o cenário dos filmes de terror feitos no Brasil

Os filmes de terror costumam cair na dicotomia entre o amor e o ódio. Há certa resistência, inclusive, entre críticos, diretores, pesquisadores e historiadores do cinema, um preconceito de âmbito mundial.

Aos fãs do gênero, existe uma onda de filmes brasileiros contemporâneos de horror, de grande potencial estético e cultural, que reforça características nacionais e regionais aos enredos, ao invés da simples repetição e reutilização de normas do que se espera desse estilo.

A professora e pesquisadora Laura Loguercio Cánepa, autora da tese de doutorado defendida pela Unicamp: “Medo de Quê? – Uma história do horror nos filmes brasileiros” já concluía, ainda em 2008, que o cinema de horror no Brasil se fortaleceria nos anos seguintes. Em 2019, Cánepa comenta em entrevista que o horror brasileiro vive seu maior momento.

Existe um elemento unificador em grande parte destes filmes. Apresentam, como em Animal Cordial (2018) e A Sombra do Pai (2019), de Gabriela Amaral, Mate-Me Por Favor (2017), de Anita Rocha da Silveira, Trabalhar Cansa (2011) e As Boas Maneiras (2018), de Marco Dutra e Juliana Rojas e Morto não fala (2018), de Dennison Ramalho, uma lógica de crítica social em coexistência com componentes do gênero horror.

O longa Morto não fala, baseado no conto homônimo do jornalista Marco de Castro, reúne vários subgêneros do terror. O filme conta a história de Stênio, um funcionário do necrotério que possui o dom (maldito) de conversar com os mortos.

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O personagem escuta o lamento dos falecidos, e faz da troca de ideias com cada um deles uma prática diária. De tanto ouvir os segredos e lamúrias do além, um dia descobre por um dos cadáveres que sua esposa, Odete, está traindo-o.

O uso irresponsável dessa informação faz com que Stênio envolva a si e aos filhos na eminente fúria de forças sobrenaturais.  Stênio em nenhum momento demonstra medo dos cadáveres. É na lógica da inversão que o horror da obra se estabelece, no assombro advindo do mundo dos vivos e da realidade cotidiana.

Segundo o autor do conto, a realidade tem por si só coisas muito assustadoras, mas as situações mais aterrorizantes possíveis imperam no dia a dia da periferia. Desse modo, a trama se desenvolve na junção de elementos periféricos e fantasmagóricos.

Com a atenção voltada para a realidade da vida do protagonista, a narrativa explora a tristeza, o luto, a culpa e o arrependimento com que Stênio segue seus dias. Não criamos empatia com o personagem logo de início, porque ele é perverso e enganador.

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Mas de alguma forma, torcemos por ele, por compreender seus problemas demasiadamente humanos. Deste modo, constrói-se um arranjo que o professor de roteiro Robert Mckee chamaria de trama de punição: O foco está no castigo, e não na redenção.

A deterioração psicológica de Stênio é tamanha que não sabemos bem ao certo se ele está sofrendo de alucinações, ou se de fato as coisas estão acontecendo. Todos os elementos de ambientação da rotina de autópsias do IML estão ali representados: de um lado, temos corpos decepados, vísceras em exposição, restos putrefatos e litros de sangue espalhados.

Por outro lado, aprendemos, acompanhando o protagonista, a lidar com a normalidade do trabalho nessas condições. Houve, inclusive, o sutil cuidado em apresentar o ponto de vista do morto com o uso de câmera subjetiva. O ator Daniel de Oliveira comenta que para fazer Stênio foi necessário aprender a lidar com os cadáveres pensando-os como objetos, porque a vida deixou de existir.

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Para facilitar esse distanciamento, ele realmente acompanhou a rotina dentro do IML de São Paulo e de Porto Alegre (cidade em que o filme foi gravado), observando a prática de abertura dos corpos.

Morto Não Fala é um filme barulhento, conduzido pelos sons penetrantes das sirenes de ambulâncias e viaturas policiais, dos esfaqueamentos e tiros, dos gritos assustados e choro, e do exorcismo na TV, as famosas “sessões de descarrego”, representando uma São Paulo noturna periférica e violenta.

A escolha deste cenário seria perfeita dentro da configuração de qualquer telejornal sensacionalista que noticia a violência, mas em uma chave diferente da espetacularização da hostilidade, o filme escancara uma série de fobias sociais que acometem a rotina das periferias brasileiras e denuncia uma sociedade de costumes e valores apodrecidos.

O diretor do filme, Dennison Ramalho, já era um nome conhecido na ficção de horror, tendo feito curtas-metragens como Amor Só de Mãe (2002) e Ninjas (2010), além da participação na antologia da franquia homônima ABCs of Death 2 (2014).

Ele foi co-autor do roteiro de Encarnação do Demônio (2008), filme que marcou a volta de José Mojica Marins ao cinema depois de anos, o último da saga do personagem Zé do Caixão. É possível observar que Ramalho, fã e amigo pessoal de Mojica, fez algumas associações de Morto não Fala com o cinema do pai do terror brasileiro, principalmente com as primeiras obras À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964) e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1967).

Não foi uma preocupação latente para o diretor o fato de o filme deixar ou não a desejar se em comparação com Hollywood. Nas palavras de Ramalho: “Os meus filmes não são filmes brasileiros de terror, são filmes de terror brasileiros”. Não se buscou, portanto, fazer uma mera cópia de outras obras de sucesso, e sim produzir um terror realista tupiniquim, que esteja de acordo com medos reais que os brasileiros se identificam e se reconhecem.

Exibido e premiado em festivais pelo mundo, Morto não fala, se der o retorno positivo, pode ser transformado em seriado a ser exibido na TV Globo, uma vez que já está nos planos da emissora, ainda mais por conta do final aberto do filme, dando margem para uma continuação.

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O que mais assusta em Morto Não Fala não é a presença de espíritos, inquietos em busca de vingança, mas a regularidade e normalidade do óbito nos subúrbios, dentro de uma escala que facilmente iria da ficção à realidade: são, portanto, os feminicídios, a violência doméstica, os crimes passionais, as vítimas de deslizamento de terra nas favelas, os membros de facções criminosas, os jovens negros assassinados, a população pobre em luto.

Os filmes brasileiros de terror, ou filmes de terror brasileiros, como preferiu Ramalho, configuram uma potência criativa de crítica social e reflexão sobre nossa realidade. Na incerteza da continuidade da vida, Mojica diria: “Terror é não saber o amanhã”.

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