Na Linha de Frente: Médicos e enfermeiros de Blumenau contam como pandemia afeta suas vidas

Profissionais da saúde precisaram se distanciar de familiares e vivem em constante estresse

“Obrigada por esperar, acabei de atender uma emergência”. Foi com essas palavras que Lucas Souza, supervisor do serviço de emergência do Hospital Santo Antônio, atendeu o telefone.

Entre incontáveis horas de plantão, atendimentos e cuidados, quatro profissionais de saúde abriram seus corações para a reportagem de O Município Blumenau e compartilharam as angústias de atuar durante uma pandemia.

Aos 31 anos, Lucas chefia outros 48 enfermeiros. Ele é responsável não apenas por gerenciar eles, mas também por acolher e trabalhar a inteligência emocional de cada um. E, no meio disso tudo, cuidar de si mesmo.

Lucas (esq.) com parte de sua equipe. Foto: Arquivo pessoal

“Estávamos acostumados à rotina desgastante. Sempre com múltiplos atendimentos e lotação extrema. Em um dia normal, atendíamos 300 pessoas. Mas com a chegada da pandemia precisamos nos reinventar. Planejar tudo do zero”, conta.

Cirurgias inesperadas no meio da madrugada também faziam parte da rotina do cardiologista Adrian Kormann. Entretanto, sendo o responsável pelos testes de medicamentos em pacientes com Covid-19, a responsabilidade é multiplicada.

“A maior parte do pensamento é focado na doença e no projeto. Estamos sempre tentando achar uma solução e um tratamento. Já até sonhei com o vírus. O nível de estresse com certeza aumenta bastante”, relata o médico.

Dr. Adrian Kormann com as demais médicas que participam dos testes. Foto: AngioCor

Os dois mencionam o mesmo ponto positivo: eles moram sozinhos. Ou seja, não precisam colocar outra pessoa em risco ou deixarem de dormir em casa, como outros médicos. Lucas chegou a ter férias recentemente, mas passou os 30 dias sozinho em casa.

“Minha família mora em Minas Gerais. Eu os vejo duas vezes por ano, mas nesse período senti que ficamos mais próximos. Foi necessário estreitar os laços para proteger o psicológico. Além do medo da morte, também tem o medo de alguém ficar desempregado. Tudo é muito incerto”, desabafa o enfermeiro.

Quando o restaurante que Juliano Jotti, de 37 anos, trabalha precisou encarar a pandemia, ele foi o primeiro a ser dispensado. Casado com uma médica intensivista, o medo de que ele contraísse Covid-19 ficou maior.

Com o prolongamento da quarentena, a empresa acabou demitindo Juliano por não conseguir manter o pagamento. Hoje, ele produz pães em casa para vender. A limpeza da casa também ficou sob responsabilidade dele, já que a diarista precisou ser dispensada.

Juliano e Alice com o gato Gru. Ele acabou sendo impactado por conviver com a médica. Foto: Arquivo pessoal

Alice Chiodelli, 35 anos, atua no Hospital Santa Isabel. A UTI foi dividida para que os pacientes com Covid-19 não transmitam o vírus para os demais pacientes. Acostumada aos plantões, ela agora convive com um medo novo: “de que lado estou hoje?”.

“Sempre que você está no lado da Covid-19 existe uma sensação de que você pode ou não se infectar, pode ou não morrer, pode ou não precisar daquele mesmo leito em um momento próximo. Pensamentos que antes não nos afetavam”, conta a intensivista.

Rafaela Schmitt, 32, intensivista do Hospital Santo Antônio, também mora com o marido. “Minha base em meio ao caos”, diz ela. Felizmente, o trabalho dele pode ser feito de casa, o que permitiu que ele mantivesse o emprego.

“Mesmo ele não sendo parte do grupo de risco, sigo aflita ao voltar do trabalho todos os dias com a incerteza de ser ou não portadora assintomática, apesar dos cuidados que tomamos, que se tornam cada vez mais extenuantes”, confessa a médica.

Os profissionais contam que muitos colegas saíram de casa para proteger os familiares. Outros deixaram os filhos aos cuidados de parentes. Alguns evitavam os plantões, sobrecarregando os demais. Mas o que sustentou as equipes foi a ajuda psicológica.

“Ela foi definidora para muitos entenderem que precisamos trabalhar, mas temos sentimentos e medos que são humanos. Entender como lidar com eles é a chave para continuar fazendo nosso trabalho da melhor maneira possível”, relata Alice.

Rafaela conta que a pele das mãos e braços já está irritada por conta do álcool gel. Os cabelos ficam ressecados por conta da lavagem constante. Maquiagem já não é mais uma opção, para que a máscara dure mais tempo.

“Costumo dizer que o coronavírus deu fim à minha ‘dignidade’. Agora sou vista descabelada, sem maquiagem, com olheiras profundas e com o rosto marcado pelas máscaras”, observa.

Mas, para ela, o cansaço emocional sobrepõe o físico. Especialmente por conta das incertezas e da pressão psicológica de ser um possível transmissor.

“Tem aqueles dias que o cansaço é tanto que transborda aos olhos. Mas o momento crítico faz aumentar a responsabilidade e necessidade de servir ao nosso propósito, salvar vidas, apesar de todas as dificuldades”, decreta.

Para Lucas, ver um paciente recuperado é que alivia todo o estresse. Foto: Arquivo pessoal

O enfermeiro Lucas relata que com as emoções à flor da pele, habilidades humanas como gratidão e empatia ficaram ainda mais em evidência. Especialmente a alegria em ver os pacientes se recuperando.

“O trabalho que fazemos com o nosso paciente é o remédio para alma deles. Quando alguém vai embora saudável, tudo que nos sufocava vai embora. O peso sai dos nossos ombros”, lembra.

Na rotina de Alice dentro de casa, a maior mudança foi o cuidado com a limpeza. Se antes ela sentava no sofá para conversar com o marido sobre o dia, hoje ela corre para o chuveiro. Isso sem mencionar o álcool gel sempre à disposição.

A médica também evita qualquer contato com os idosos do prédio e não deixa ninguém entrar no elevador com ela. Como está em contato com os pacientes infectados diariamente, ela busca reduzir as chances de transmitir o vírus.

“Me incomoda não poder ajudar. Mas o mais difícil tem sido não poder tocar as pessoas. Ontem precisei dar uma notícia triste para uma família. Choramos juntos, mas não pude abraçar a mãe. Foi um dos dias mais tristes que já presenciei na minha vida profissional”, relembra.

Entretanto, a médica também conta que hoje entende quem não defende o isolamento social. Após ouvir o desabafo de uma conhecida que corria o risco de fechar a empresa da família, ela passou a buscar o equilíbrio.

“Quarenta dias podem fazer muitos autônomos perderem tudo. Meu incentivo é que as pessoas cuidem com a higiene e priorizem o comércio local. Hoje mesmo vou procurar um mercado pequeno no bairro para fazer minhas compras. Pensar no próximo é o que vai salvar-nos todos nesse momento”, opina.

Entretanto, o enfermeiro Lucas defende que as pessoas só devem sair de casa quando for necessário. Ele considera aglomerações desnecessárias um desrespeito com os profissionais de saúde, que lutam com leitos lotados e correm riscos diariamente.

Reabertura do Shopping Neumarkt repercutiu em todo o Brasil. Foto: Reprodução

“Ficamos revoltados com aquele aglomerado de gente no shopping. Sei que o comércio precisa abrir, mas as pessoas estão quebrando as barreiras de segurança e desrespeitando a saúde dos outros. Acho que só vão entender quando acontecer algo grave com alguém da família”, conta.

Para o cardiologista Adrian Kormann, os pesquisadores brasileiros estão no caminho certo para encontrar um tratamento adequado. Seja com os medicamentos, com vacinas ou com a imunidade cruzada de outras imunizações, a pandemia vai acabar em algum momento. Porém, até lá, um caminho de muitas incertezas continua sendo trilhado.

“Historicamente sabemos que pandemias têm um início, um pico e um final. Não sabemos se já alcançamos este pico, mas raramente elas duram mais que um ano, graças à imunização natural das pessoas”, especifica o cardiologista.

Já Lucas espera que, daqui para frente, a sociedade entenda a importância do cuidado e da informação. E também compreenda que todo profissional de saúde merece respeito e reconhecimento. “Nós também somos o amor de alguém”, diz.

“O que mais me frustra é a ignorância da população e dos governantes. Ninguém sabe como a doença vai reagir. Você pode pegar e não ter nada, mas alguém pega de você e morre na UTI. Espero que daqui para frente médicos, enfermeiros, bombeiros, motoristas do Samu, todos sejam mais valorizados”, deseja o enfermeiro.

Por fim, todos reforçam os conselhos tão repetidos: lavar bem as mãos, ter álcool gel à disposição, ficar em casa sempre que possível e usar máscaras. “Não no queixo, por favor!”, lembra a médica Rafaela, “e ah, lembrem sempre de ter empatia pelo próximo”.

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