Por Anna Coirolo
– Anna, quem foi a sua escolha?
Essa pergunta veio logo na primeira aula do semestre, na qual já era a terceira de meus colegas, visto que entrei duas semanas atrasada no semestre letivo. Enquanto a professora questionava os demais, me deparei com muitos nomes e possibilidades dentro da minha mente. Sabia dos desafios propostos com o trabalho – já que precisávamos entrevistar ao menos seis pessoas para a produção do perfil. Quis alguém que já conhecia, mas não que conhecia na intimidade.
– Rosane Magaly Martins! – respondi para a professora.
Conheci Rosane em 2014. Ela namorava Valério, que é seu atual companheiro, com quem eu trabalhei em uma finada agência de publicidade. Listei com quem poderia falar sobre Rosane e combinei comigo mesma que só ouviria as respostas dos depoentes após entrevistá-la.
Chegado o dia da entrevista, a caminho da casa dela que é próxima da minha, resolvi ser desleal a mim mesma e ouvi as respostas. Confesso que próximo à casa, sentei-me em um ponto de ônibus e chorei. Pelo curto espaço destinado a esse perfil, não é possível reproduzir o peso total de algumas falas que ouvi. Aqui, um peso de representatividade, como uma angústia suprimida que pode ser desfeita com a ajuda de Rosane, seja como amiga ou advogada.
Me recompus.
É possível ver de longe uma casa rosa clara com portão branco. O pequeno jardim ornamentado com plantas e pedrinhas brancas e pretas que formam o símbolo do “ying-yang” – trazendo o equilíbrio.
Sou recepcionada por Valério e pelos animais. Acabei conversando algum tempo com ele, sem me dar conta de que Rosane já estava ali, sentada em seu escritório. Os ambientes da casa são ricos em detalhes, todos parecendo minuciosamente posicionados e combinados. Uma casa muito organizada.Peço desculpas por não a ter visto.
Eu era apenas uma desconhecida, com o pretexto de esta ali como estudante de jornalismo na FURB.
Me apresento, digo quem sou.
Me oferecem uma xícara de café.
A partir desse momento, a minha história se cruza oficialmente com a dela.
Rosane Magaly Martins. Um nome que desperta sentimentos antagônicos em quem o ouve ou lê. Apesar das dualidades sentimentais, são poucos os que conhecem, de fato, as trajetórias de sua vida. Uma mulher que “não passa batida”.
Seja pelas polêmicas, a opinião forte, ou pela beleza de quem assume, aos 62 anos, os cabelos grisalhos e curtos.
Para Jeane Martins Sperckart, 25 anos, mestranda em Artes Cênicas Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), a filha mais nova, sua mãe é sinônimo de reinvenção: “Minha mãe é uma figura muito importante da minha vida, uma pessoa sempre aberta ao diálogo. Uma mulher que se renova conforme a vida pede e os anos transcorrem”.
Em retrospectiva, a filha caçula vê a importância que a mãe teve na sua primeira formação política [e de mundo] pois ela sabia incluir as crianças. “Ela não deixava a política como algo que não inclui as crianças. Sempre introduziu esses assuntos sem rebaixar a inteligência da criança, no sentido de ’você é criança, você não sabe de nada” relembra.
Rosane, nasceu em Blumenau/SC, no ano de 1961.
Passou a infância no bairro da Glória, no extremo sul da cidade. Suas origens remontam a uma família de trabalhadores empregada em indústrias tradicionais de Blumenau. Sua mãe, Nelita (in memorium), era costureira na Companhia Hering e seu pai, Alvary (in memorium), torneiro mecânico na Artex.
Uma figura importante na sua infância foi a avó paterna, Clarice de Souza Pereira. Analfabeta, trabalhava como safrista, o nome era dado aos trabalhadores rurais contratados para atender a demandas específicas àquela época, na Souza Cruz.
Rosane ressalta que a vó contava que seu avô tinha sérios problemas com a bebida. Muitas vezes ela tinha que fugir barranco abaixo com os filhos pequenos pois tinha medo de que ele pudesse matá-los.
“Minha avó sempre teve um senso político muito forte, contava que na época mandavam trabalhadores votar em determinado candidato para prefeito e ela dizia indignada: ‘Tem que votar em quem me representa!’”. Para Rosane, a avó influenciou seu modo de compreender o mundo.
Primeiros atos: os filhos, as artes, os amores
Com uma carreira consolidada como advogada, a blumenauense percorreu caminhos diferentes antes de advogar. Seus pais sempre a incentivaram, acima de tudo, a estudar. Com 13 anos, começou a trabalhar na Contabilidade Agostini como officegirl. Aos 14, ingressou no curso técnico de contabilidade no Colégio Santo Antônio. “Era um colégio de pessoas ricas, meus pais não tinham como pagar. Meu salário na época bancava apenas o valor da mensalidade”, relembra.
Após formada, trabalhou no escritório das lojas Prosdócimo e Casa Royal, nesta última, conheceu seu primeiro marido. Na hora de prestar vestibular, já escrevia poesias, então se inscreveu em Letras, mas por algum motivo Contabilidade acabou falando mais alto. “Eu já odiava contabilidade nessa época, mas como sou obstinada, se esse fosse meu caminho, seria a melhor contadora de Blumenau”, comenta.
Casou aos 18 anos. A união durou por volta de quatro anos e fruto dela sua primeira filha, Geórgia. De volta à casa dos pais, reingressou na graduação de contabilidade. Em paralelo, começou a integrar os movimentos estudantil, cultural e artístico da cidade. De fato, os números da contabilidade se diluíram frente à força das artes.
Participou da criação da Associação dos Poetas Independentes, a qual presidiu durante três anos. Nesse fluxo criativo, nasceu seu primeiro filho literário, o Fel do Cio, em 1989. Rosane tem mais de 14 livros publicados, sendo esses de poemas e poesias, assim como livros de Gerontologia, uma de suas especialidades.
Nas artes, fez amigos. A mestranda em Teatro pela UDESC, Giovanna Bittencourt, 32 anos, que é sobrinha do artista Tadeu Bittencourt (in memorium), e responsável pelo resgaste e construção da memória do artista, relembra o modo como o tio enxergava Rosane:
“Tadeu acreditava muito no trabalho da Rosane e a ajudou na publicação da sua primeira obra. A ilustração da capa foi ele quem produziu. Cuidou da parte de impressão com uma gráfica, e que na época fez um quadro sob encomenda para o dono da gráfica, coisa que não fazia”, recorda.
No final de sua vida, Tadeu foi acometido por uma doença que progrediu rapidamente. Rosane e a Noemi Kellerman, 84 anos, professora de Música aposentada da FURB, promoveram um leilão de obras para arrecadar fundos, algo que o ajudou muito. Isso reforça uma característica pessoal da Rosane: gratidão por quem a ajudou.
Fora das artes, perdeu emprego de secretária, algo terrível para quem sustentava sozinha a filha e ajudava a mãe. “Chorando as mágoas no Tunga [famoso bar blumenauense, na Rua XV] a oportunidade apareceu na forma de pessoa: Arthur Monteiro, editor-chefe do Jornal de Santa Catarina”, relembra Rosane. De secretária, viu-se jornalista em um dos mais importantes veículos de comunicação do Brasil à época. “Logo, me deram um telex em espanhol para traduzir. Eu não falava espanhol. O jornalista Eumar Silva me ajudou no aprendizado da função”, contou.
No período de JSC, conheceu seu segundo marido e pai de Jeanne e Thiago. Após três anos de jornal e uma greve, veio a demissão de quem a aderiu.
A greve aconteceu no ano de 1992, no Jornal de Santa Cataria. O motivo foi a falta de aumento salarial, que segundo o Sindicado de Jornalistas de Santa Catarina e com base em dados da Dieese (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), deveria ser de 75%. É preciso lembrar que nessa época a economia brasileira possivelmente viveu sua pior fase. O Plano Collor estava em ação, com recessão, confisco de poupanças e uma inflação que fez preços subiram 1.119,10%.
Os jornalistas da redação do JSC foram à luta, aderiram à greve em busca de aumento. Ao todo, foram dois meses de negociações. Consequência da greve foi uma crise financeira no jornal e jornalistas demitidos de imediato, mas o movimento entrou para a história do jornalismo como uma das maiores greves da classe.
Advogada por escolha do destino
Parcialmente desempregados e com três filhos para sustentar, o casal precisou se reinventar. Na época, o ex-marido também era assessor de comunicação da FURB. “Decidimos estudar pois havia um desconto para quem trabalhava lá.
Por conta das crianças, eu estudava no período matutino. As opções eram Engenharias, Educação Física e Direito”, conta Rosane. Por ter intimidade com as palavras e a graduação em Letras não estar disponível, o Direto foi a opção acertada. Nesse período, para ajudar no sustento da casa, trabalhava como assessora de comunicação em sindicatos da cidade.
Como estudante, ela e a juíza blumenauense Quitéria Peres, 51 anos, foram colegas – tanto no Direito como na poesia. “Conheci a Rosane na época da faculdade, tendo desde logo observado seu olhar sensível para com as pessoas vulneráveis. Testemunhei seu transbordar em palavras pela via literária. Em um momento da nossa carreira jurídica, compartilhamos ideais dividindo um escritório de advocacia.”
Mestra em Educação pela FURB (2019), Rosane atuou como professora universitária em diferentes instituições de ensino superior.
A sensibilidade citada por Quitéria, apareceu também nas falas da escritora Marina Wirna, 31 anos. Em seu relato sobre Rosane (um adendo: esse foi o depoimento que me fez sentar no ponto de ônibus e me debulhar em lágrimas), Marina mencionou que a história de Rosane se mistura à sua própria. A relação das duas é de amizade, lutas (a)partidárias, assim como nos tribunais. Wirna conta que algo que a emocionou na trajetória de Rosane é o fato de que logo após conseguir sua licença como advogada, fez seu próprio divórcio do primeiro marido. História essa que Rosane confirma e acrescenta que pagou três advogados, mas nenhum fez o desquite de forma correta.
“Eu também tive problemas em relação a questões da família. Rosane advogou em meu favor. Me senti representada. A minha história de fato e verdade foi contada. Além de uma advogada, uma pessoa que sentiu o que eu sinto”, comenta Wirna.
Corpo e mente em movimento
Inserida nos movimentos sociais desde a década de 1980, Rosane Magaly Martins também se atenta aos movimentos conhecidos como New Age, no Brasil, Nova Era. Esse movimento tem práticas muito diversas, mas que buscam o transcender humano.
Praticou yoga, budismo, visitou a Índia e fez um curso de quatro anos sobre bioenergética. Com os conhecimentos adquiridos, voluntariou-se no Serviço Social do Comércio (SESC) para dar aulas, mas para sua surpresa, só havia pessoas idosas na turma. Frente a isso, veio a necessidade de compreender melhor as questões do envelhecimento humano. Não poupando esforços em adquirir conhecimentos, fez duas especializações na área de Gerontologia, uma na FURB e outra no México.
“Me tornei referência. Trabalhei até para a Fio Cruz”, relata. E de um voluntariado nasceu o Instituto Ame Suas Rugas e mais quatro livros a respeito. O Instituto tem como norte, além de cursos e formações em gerontologia, abordar socialmente de forma leve, porém séria, a terceira idade, os ciclos e escolhas da vida.
Rosane tem uma extensa lista de realizações ligadas a movimento culturais e artísticos, assim como movimentos ativistas da cidade. Noemi Kellermann, relembra que a advogada “Foi presidente do Conselho de Políticas Culturais durante duas gestões. E sob sua liderança e iniciativa teve início em Blumenau as primeiras Conferências de Cultura até hoje acontecendo agora sob a gestão da nova geração.” Um feito considerado de ainda maior relevância em uma cidade como Blumenau, que procura ter como carro-chefe o turismo e a cultura.
Pausa para o almoço
Por volta da 14h, fizemos uma pausa para o almoço. Valério se encarregou dos preparos da refeição, macarrão ao molho, muito gostoso por sinal.
Atualmente, Rosane está à frente da ONG Mães do Amor. A ONG de amplitude nacional tem núcleo no município desde maio de 2022. Sua missão é lutar pelos direitos humanos em defesa das pessoas LGBTQIA+ (L: Lésbicas · G: Gays – · B: Bissexuais – · T: Transexuais, Transgêneros, Travestis – · Q: Queer – · I: Intersexo – · A: Assexual). Em pronunciamento na Câmara Municipal de Vereadores, em 17 de maio do ano passado, logo após o início das atividades em Blumenau, Rosane ocupou a tribuna para enfatizar a importância da mobilização em torno da entidade então recém-criada:
“Estamos aqui não só em nosso nome, mas em nome de todas as mães, avós, tias, irmãs e famílias de pessoas LGBTQIA+ que vivem em nossa cidade.[…] Que sejamos sempre acolhimento a todas as identidades de gênero e tenhamos mais comprometimento com o respeito e valorização das diferenças, que sejamos agentes de combate a qualquer tipo de discriminação e preconceito”.
No campo da política partidária, atuou diretamente em dois partidos – o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Foi candidata a vereança blumenauense em 2020 e candidata a deputada estatual em 2022, ambas tentativas pelo PSOL. Na luta partidária, o destino a fez família. O fiscal do Seterb, Eder Lima, 56 anos, pai de Olivia, de cinco, com a professora e filha mais velha de Rosane, Georgia Faust Martins, de 41 anos, também se manifesta sobre a liderança: “Rosane é uma avó maravilhosa. Proporciona tudo que é possível para o desenvolvimento físico, intelectual, psicossocial da Olivia. É a melhor vó que minha filha poderia ter”, resume.
Sonhos para o futuro
Quando questionada sobre seus sonhos de infância e futuros, Rosane não deixa dúvidas. As respostas são curiosas. De criança, Rosane achava lindo as empacotadoras de presente e queria ser uma “até eu saber que o salário não era bom”, conta, aos risos. Para o futuro, “desejo uma viagem por toda a América Latina de carro ou motorhome (se tiver dinheiro). Conhecer cada país, entender cada cultura, cada luta”, antecipa.
Nesse momento, nossa conversa muda o ritmo… clientes a chamam no celular. A justiça não pára e a advogada precisa retornar aos seus deveres. Deixo a casa com uma certeza… Rosane, uma mulher que renasce a cada fase. Vive sem medo de ser feliz.
Pessoas que fazem a história
Chega ao fim com esta publicação a série de perfis produzida pelos acadêmicos de Jornalismo da FURB. Para nós do jornal O Município Blumenau, a parceria rendeu conteúdos maravilhosos e que comprovam que só é possível fazer jornalismo de qualidade quando também falamos sobre pessoas da vida real, que encontramos no nosso dia a dia.
Da confeiteira até o professor universitário, aqui foram contadas histórias de pessoas que ajudam a construir o nosso senso de comunidade, de cidade viva. E iniciativas como essa se encaixam perfeitamente com o que os valores que o Grupo O Município acredita.
Encerramos aqui apenas mais este sensacional trabalho em parceria com o curso de Jornalismo da FURB, mas com a certeza de que voltaremos a ter aqui o espaço para novas iniciativas como esta, que enriquecem nossos leitores e contribuem com a experiência e a formação daqueles que também contarão histórias muito em breve.
Cristóvão Vieira
Editor-chefe do jornal O Município Blumenau
Série de perfis
Este perfil integra uma série em parceria com o curso de Jornalismo da FURB. A iniciativa promove textos produzidos durante as aulas da disciplina de Gêneros Jornalísticos, ministrada pela professora Magali Moser, na quarta fase do curso.
O perfil é um dos formatos possíveis de textos jornalísticos que busca valorizar uma personagem.
As reportagens-perfis assumem um papel focado na experiência do outro, tendo como centralidade uma pessoa. Na parceria estabelecida entre O Município Blumenau e o curso de Jornalismo FURB prevê que a cada semana, o perfil escrito por um(a) estudante da turma seja publicado no portal, sempre nas terças-feiras.